SONHOS
Ontem eu tive um sonho. Eu estava em casa quando uma carta entrava pela fresta embaixo da porta. Um envelope pequeno, de cor parda, endereçada a mim. Encarei o envelope por um instante. Mesmo antes de saber de quem era, peguei as chaves penduradas no chaveiro ao lado e, ao abrir a porta que dava para a rua, não percebi a presença de ninguém. Imaginava que seria o carteiro conhecido, o mesmo que entrega as correspondências na rua onde eu moro desde quando eu era pequeno. O volume de entregas diminuíra bastante - quem escreve uma carta hoje em dia? - eu já não o via há tempos.
Entrei novamente em casa e recolhi o envelope que ainda estava no chão. Meu nome estava escrito por uma caligrafia muito bonita, letras finas de traços longos, delicadamente grafadas com uma pena, um trabalho profissional. Virei o envelope e não havia nada escrito no verso, apenas o impresso de fábrica que pedia para o remetente se identificar. Curioso, apalpei o envelope para tentar identificar o que havia dentro. Apertei, girei, balancei e olhei contra a luz, mas as tentativas foram inúteis. Não me restava alternativa a não ser abri-lo. Procurei por alguma ponta solta na aba do envelope para puxá-la, mas ela estava totalmente colada. Então, fui até a cozinha e peguei uma faca. Cuidadosamente, cortei a lateral e deslizei a lâmina até a outra extremidade. Não consegui ver nada de imediato, virei a abertura para baixo, sacudi o pacote e, um pequeno pedaço de papel caiu. Nele estava escrito um endereço conhecido, com a mesma letra que me identificava como destinatário, o nome e o número da antiga casa em que morava com meus pais quando pequeno. Logo abaixo, havia uma assinatura que deveria identificar o remetente, mas não pude decifrar o nome escrito. Estranhei, porém, como ficava a poucos quarteirões da minha residência atual e minha curiosidade não me permitia ficar sossegado, peguei o meu casaco e saí. Tomei o caminho para minha antiga casa.
Tudo estava diferente. A medida em que andava, o cenário à minha volta mudava com tremenda rapidez, como se o mundo inteiro estivesse numa velocidade muito acima da minha. A impressão que eu tinha era que eu andava em câmara lenta no meio de toda aquela confusão.
Assim que cheguei meu antigo endereço, tive a certeza de que sonhava, pois me avistei, ainda menino, sentado no degrau em frente ao portão da casa. Lembrei-me de que a letra que estava no envelope era a minha quando criança. Minha caligrafia mudara muito, há anos não escrevia em letra cursiva. Desde o colegial, tudo era escrito em letras bastão. Eu estava visitando uma memória antiga. Eu estava cabisbaixo, triste por ter perdido a partida de futebol no campeonato interclasses da escola. Apesar de não ser o melhor do time, eu havia falhado e por minha culpa sofremos o gol da derrota. Acho que eu estava no sétimo ano. Observei a cena. Percebi que minha mãe me avistou pela janela e me chamou. Neste momento eu, já adulto, quis correr até ela, faz anos que ela partiu. Porém, minha consciência não permitiu, eu sabia que estava contemplando uma memória. Ela saiu pela porta, caminhou até o portão, sentou-se ao meu lado. Me falou sobre coisas da vida, sobre as derrotas e sobre como as coisas nem sempre saem como nós planejamos. Ela sabia sobre a partida e imaginou que não tínhamos ganhado pela minha cara de tristeza. Lembrei que no ano seguinte, também não ganhamos o campeonato, não tínhamos o melhor time, mas com certeza, vendemos muito caro nossa derrota. Apesar de não termos conquistado o campeonato, nos tornamos muito respeitados.
Minha mãe se levantou, tomou minha mão e me levou para dentro da casa. Assim que as duas figuras sumiram porta à dentro, percebi que havia outro envelope onde eles estavam sentados. Corri até o local e o recolhi, era igual ao que eu havia recebido em casa e, novamente, meu nome no campo do destinatário e sem remetente. Rasguei o invólucro sem o cuidado com que abrira o primeiro. Mais um bilhete, porém, com outro endereço. O local descrito era a casa da minha primeira namorada. Tomei o caminho para lá e misteriosamente quando virei a primeira esquina, já avistei o local, pensei que poderia ser fácil assim na realidade, a casa era bem distante de onde estava, mas bastou virar na outra rua e já estava lá.
Me vi caminhando na rua, já adolescente, chorando copiosamente, sem ter vergonha alguma de mostrar toda a minha tristeza, tristeza que só se tem quem é rejeitado pelo grande amor. Ao assistir a cena, fiquei ruborizado, me perguntei como tive coragem de chorar daquele jeito no meio da rua. Foi engraçado ver que não tive nenhum problema em demonstrar meus sentimentos. Porém, por um momento revivi aquela dor e, quase tive a mesma atitude. Enquanto eu me seguia através do caminho, pude notar que uma garota me observava de longe. Ela me chamou tanto a atenção que decidi caminhar até ela. Eu a reconheci, a garota era a minha esposa.
Continuei a seguir meu eu adolescente. Eu estava a caminho da casa de um antigo amigo. Eu sabia o que tinha acontecido, passei a tarde inteira com ele e, depois, liguei para a minha casa e avisei que dormiria lá. Aguardei do lado de fora, não sabia o que deveria fazer. Andei em direção ao portão da casa e quando decidi entrar, notei outro envelope na caixa de correio. A caligrafia havia mudado, era minha ainda, mas em outra fase da vida. Abri o envelope e, no bilhete, estava o endereço da minha faculdade.
Presenciei duas cenas. Na primeira, via meu pai acanhado, tentando parar o carro longe da entrada da faculdade que eu havia ganhado uma bolsa de estudos. Ele pensava que eu ficaria envergonhado por causa do carro velho dele. Toda a sensação daquela conquista me veio à mente. E, instantes depois, na segunda cena, me via saindo da faculdade após receber meu diploma. Eu estava radiante, empolgado com todas as oportunidades que se abriam para mim. O céu era o limite em meus sonhos juvenis. Entrei no antigo prédio da faculdade e caminhei por entre as salas e corredores. Curioso, procurava por outro envelope. Caminhei até meu antigo armário e lá estava mais uma carta endereçada para mim.
Em cada uma das cenas, um momento marcante de minha vida era relembrado. Eu estava revivendo minhas alegrias e tristezas, conquistas e derrotas. Algumas delas, eu sabia que haviam me marcado muito e, outras, nem tanto. Conversas com meus pais, churrasco com amigos, meu casamento, minhas conversas com Deus e até algumas reuniões de trabalho. Era doído reviver as derrotas, as falhas, as escolhas erradas que eu fizera. Em todas elas eu encontrava uma carta com um bilhete dentro do envelope, endereçados a mim e, agora, podia ver eram remetidos por mim também. Parecia que eu estava me guiando através da minha própria vida. Os diversos “eu”, criança, adolescente, jovem, adulto e mesmo o “eu” de agora, mais maduro, me guiando através de tudo o que me marcou. Interessante ver como eu encarava cada uma das fases. Lembrei que eu nunca desisti, embora tenha desanimado em diversas situações, e sempre encontrava uma maneira de prosseguir.
Conquistas profissionais, casamento, velório da minha mãe, nascimento dos filhos, a expectativa do primeiro neto, a perda de amigos, tudo me vinha à memória.
Na cena em que me direcionei para o dia em que minha filha me visitava em casa, com meu primeiro neto foi incrível. Ali estava mais um pedacinho de mim. Vida da minha vida! Fruto do meu fruto! Tive o prazer de reviver aquele momento tão glorioso. Após minha filha ir embora com meu genro, mais um envelope era entregue por baixo da porta. Não era a minha letra que estava ali. O endereço não era conhecido, apesar de saber onde ficava fisicamente, e não me trazia nenhuma memória. A caminhada foi mais longa que o normal. Durante o percurso, refleti sobre tudo o que aconteceu. O que significavam aquelas lembranças? O que era aquele sonho?
Chegando ao endereço não havia outro “eu” me esperando. Um homem, com um semblante comum, me aguardava na porta de um hospital. Apesar de não o conhecer, sua presença era agradável, sua voz ressoava num tom que trazia paz ao seu redor. Ele me levou a um passeio no jardim que ficava ao lado do hospital. Enquanto conversávamos, ele me perguntava sobre tudo o que eu vira, sobre as recordações, tanto as boas quanto as más. De repente, um sentimento foi tomando conta do meu ser e me inquietando. Num esforço monstruoso, temeroso da resposta que receberia, eu perguntei:
Eu: - Eu morri?
Homem: – Não. Mas terá de escolher agora se ainda quer viver.
Eu: - Como assim? Eu posso escolher?
Homem: - O que você deseja?
Eu: - Haverá sofrimento se eu escolher viver?
Homem: - Sim. Mas também haverá alegrias, como sempre houve.
Eu: - Escolho a vida. Quero continuar a viver as coisas boas, ainda que para isso, coisas ruins possam aconteçam.
Homem: - Então, até breve.
Após a despedida, eu adormeci no banco do jardim em que eu conversava com o homem desconhecido.
Acordei com a lembrança deste sonho viva em minha mente. Ao abrir os olhos, não reconheci o local onde estava. Girei a cabeça e vi minha esposa e meus filhos sentados num sofá ao lado da cama onde eu estava. Todos dormiam, pareciam exaustos. Eu examinei o local em silêncio e, ao olhar pela janela, vi o banco do jardim em que eu adormeci no meu sonho. Eu estava no hospital!
Minha esposa despertou e, ao me ver acordado, sorriu. Eu tentei sorrir de volta, mas senti algo estranho no meu rosto.
- O que aconteceu? – perguntei, com a voz embargada.
- Você não se lembra? - indagou minha esposa.
- Não – respondi.
- Você teve um AVC fortíssimo. O médico disse que não sabia se você acordaria.
- Eu acordei! – tentei sorrir, mas a boca estava um pouco torta, devido o efeito do derrame. - Pronto para continuar mais uma vez.
O médico entrou na sala correndo, surpreso pelo meu retorno.
- Você é muito forte, senhor!
Após examinar os dados de todos os aparelhos que estavam ligados ao meu corpo, ele me recomendou descansar.
Eu fechei os olhos, mas não conseguia dormir. Essa viagem no tempo me fez relembrar de tantas coisas importantes. Todas as lembranças, boas e más, me ajudaram a eu me tornar aquilo que sou. Foi interessante reviver tudo com a perspectiva de alguém que já sabia o que aconteceria no futuro. Agora, eu estava iniciando uma nova fase. Quais desventuras me aguardam? Não sei. Basta a cada dia o seu próprio mal... e a sua porção de alegria.
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