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MEU PRIMEIRO ASSALTO

Aviso: Este conto possui descrição de cenas de violência e linguagem forte. Não é recomendado para crianças.

Conto: Meu primeiro assalto
Autor: Soaréstes Santos

Naquela manhã eu não imaginava que minha vida seria marcada com uma experiência tão forte. Se você vive em alguma grande cidade do Brasil, é bem provável que, como eu, você resida na periferia ou bem próximo a ela, as estreitas faixas da classe média. Por mais absurdo que pareça, é comum ver condomínios com imóveis que custam mais de um milhão de reais ao lado de favelas onde pessoas vivem em condições desumanas.

Viver na periferia é um desafio para poucos. Isso é modo de falar, afinal, a maior parte dos brasileiros vive nas periferias de cidades sem planejamento urbano. O que quero dizer é que é difícil e nada legal. O termo legal eu aplico aqui tanto o sentido jurídico quanto no informal. É ilegal, se é que se pode dizer que há lei, talvez, a lei do mais forte, a lei do silêncio, a lei do mundo cão. Também, não é nada agradável, sem serviços públicos como iluminação de vias, transporte de qualidade, ruas pavimentadas e até o saneamento básico. Viver na periferia é uma experiência desagradável e insegura.

Voltando ao tema central da história, eu não sabia que participaria do meu primeiro assalto a mão armada. Como em toda a primeira vez que se faz alguma coisa, estava bem nervoso, mas acredito que me saí bem. O dia estava muito quente, era quase impossível ficar dentro de casa. O ar pesado e malcheiroso subia do esgoto a céu aberto. Eu estava com uma fome tremenda. O cardápio do almoço foi arroz, feijão e um ovo frito. Ao meio dia o calor era insuportável, o telhado sem forro transformava a casa em um forno.

A rua estava cheia. Mesmo com o sol escaldante, a molecada jogava bola e soltava pipas. Os pequenos quadrados coloridos com suas longas caudas criavam um mosaico peculiar no céu. Apesar do perigo da proximidade da rede elétrica e do pó de vidro que se passava nas linhas, durante muito tempo eu participava daquele espetáculo. As turmas se dividiam de acordo com o ponto de concentração, normalmente, o cruzamento entre ruas, onde havia espaço suficiente para a esquadrilha levantar voo. O objetivo era travar uma batalha aérea e conquistar as alturas. A linha mais cortante e o piloto mais habilidoso levavam as glórias.

Algumas quadras depois, outro grupo se formava e, uma vez que a esquadrilha inimiga colorisse o céu, o campo estava pronto. Os modelos eram diferentes na forma e nas cores. A movimentação era iniciada pelo menos experiente. Sua função era atrair as pipas das outras turmas para perto e testar a qualidade do fio cortante. Eles eram a isca ou, para se utilizar de outro ditado rural, eles eram o boi de piranha. Uma vez que a isca atraía a atenção dos inimigos, os mais experientes direcionavam suas naves e os cercavam. Os brados de vitória eram entoados com toda a força de suas gargantas para que fossem ouvidos pelos perdedores que tiveram suas pipas cortadas. O triunfo maior era que, além de cortar a linha do oponente, o piloto conseguisse capturar no ar a pipa do inimigo. Quando isso acontecia, não foram poucas as vezes que os perdedores vinham para a briga, tentando recuperar seus despojos.

Passei algumas horas acompanhando a dança de pipas no céu. Porém, estava muito inquieto. A sombra da única árvore era muito disputada. Eu não sei como eu aguentava ficar sob o sol escaldante quando era garoto. Às vezes, minha pele clara pagava o preço com queimaduras e vermelhidão, mas isso não era motivo para não estar no meio da turma. Decidi caminhar até o campo de futebol e conferir se haveria partida, era uma caminhada curta. Quando cheguei, o jogo estava interrompido. Uma jogada mais dura causou confusão e alguns jogadores trocaram socos e pontapés. Duas expulsões de cada lado resolveram a briga e a partida continuou.

É interessante perceber que a violência está sempre presente na periferia. Seja no céu cortando as pipas dos outros ou na briga para reavê-las, seja na entrada dura na partida de futebol e, de novo, na briga para resolver a situação. Tão cruel quanto a violência em si é a aceitação dela como algo normal. Saber lidar de forma natural com ela é um sintoma mais preocupante e, eu, infelizmente, agia com certa desenvoltura em situações de grande estresse. Talvez, essa foi a razão de eu ter passado bem pela experiência do assalto.

A partida terminou com a vitória do time do bairro. A rivalidade nas pipas era traçada em quarteirões, mas no futebol era diferente, mais abrangente. Os times do bairro, ou da vila com o costumávamos dizer, só se enfrentavam em ocasiões especiais como festivais ou para arrecadação para alguma causa especial. A violência tornou a prática do futebol de várzea quase uma profissão de risco. Se antes era limitada a alguma contusão mais séria, hoje, não há limites e os limites que conhecíamos foram há muito ultrapassados.

O clima mudou de repente, como sempre acontece em dias de verão quentes como aquele. A chuva cairia forte e rápida. Por um lado, era muito bom, pois amenizava a temperatura e nos trazia certo alívio. Por outro, os riscos de os córregos transbordarem e arrastarem casas ou de haver deslizamentos aumentavam.  Decidi voltar para casa, talvez pudesse dormir um pouco e controlar a ansiedade. Enquanto caminhava, passei pelo mercadinho da vila. Rogério era o dono do comércio multifacetado, uma mistura de mercearia, hortifruti, padaria, bar, açougue e loja de utensílios domésticos. Você podia comprar pão, verduras, bebidas, alguns tipos de carnes e embutidos, itens de cesta básica como arroz, feijão, farinha e utensílios como panelas, potes de plásticos e outras muitas coisas. Aquele foi o local escolhido para o crime.

Eu estava desempregado e sem nenhum tostão no bolso. Cheguei em casa assim que a chuva despencou. Passei pelo portão ao som de um trovão que fez as paredes tremerem. Meus pais haviam chegado da igreja pouco antes. Minha mãe estava alegre como sempre, ela cantava enquanto cuidava da casa. Ela tinha um sorriso fácil e uma voz aconchegante, mesmo que não tão afinada. Sinto falta destes momentos. Meu pai estava assistindo um programa de notícias na televisão. Conversamos um pouco sobre os crimes e suas repercussões.

Ele me acenou e pediu para fazer silêncio. Depois, apontou para o jornal que estava sobre a mesa. Estranhei o gesto, mas fiquei curioso. Peguei o papel e comecei a folhear as páginas. Na sessão policial havia uma foto em destaque e, para minha infelicidade, eu reconheci o rosto que estava estampado. A notícia dizia que ele fora preso com outros dois homens. Eu me recordo de ter ficado muito triste, com raiva e decepcionado. Apesar de não sermos parentes sanguíneos, ele era como um irmão mais velho, referência para mim e para o meu irmão. Ele estudava e trabalhava duro. Segurou uma barra grande quando meu pai estava doente. Como é que ele se meteu numa enrascada daquelas? Eu conversava baixo com meu pai. Ele não sabia se contava para minha mãe ou não. Por fim, decidiu mostrar a reportagem para ela também. Eu lembro dela chorar enquanto lia a notícia. No instante seguinte, disse que iria orar por ele e pediu para que meu pai descobrisse o que acontecera e como ajudá-lo.

Um cheiro forte entrou pela porta. Um odor torrado, esfumaçado, doce e cítrico, tudo ao mesmo tempo. Minha tia passava um café na cozinha dela. As duas casas dividiam o mesmo quintal. Nesta época eu ainda não tinha descoberto o prazer do amargor de um bom café. Não demorou até que meu tio entrasse pela porta e perguntasse se alguém queria um copo de café. Mesmo hoje, sabendo apreciar uma boa xícara de café, eu evito a bebida em dias quentes. Eu neguei como sempre fazia. Meu pai aceitou e meu tio foi buscar. Sem perceber que falava em alta voz, disse que não acreditava como alguém conseguia beber algo quente naquele calor, mas que gostaria de comer um bolo de fubá cremoso que minha mãe fazia. Só me dei conta da situação quando minha mãe pediu para eu comprar os ingredientes que ela faria a receita para mim.

A chuva caiu muito forte, porém, foi muito breve. O cheiro de terra perfumava o ar. Há quem deteste este aroma de chuva num dia quente de verão, particularmente, acredito que este tipo de pessoas não são confiáveis, elas estão no mesmo nível das pessoas que não gostam de cachorros. O sol dava um espetáculo e pintava o céu de muitas cores. Um arco-íris atravessou o firmamento embelezando as nuvens que ainda restavam. Peguei o dinheiro que minha mãe me deu para as compras com certa tristeza por não ter condições de arcar com os custos, mas a expectativa de me deliciar numa das comidas que eu mais gosto foi maior e apagou o sentimento ruim. Eu tinha a lista dos ingredientes gravada na memória. Para minha infelicidade, recusei o bilhete no qual minha mãe escreveu todos os itens.

A tarde continuava quente, embora a chuva tenha contribuído muito a tornando suportável. Eu gosto tanto daquele bolo que, mesmo se estivesse mais calor, eu caminharia até o mercado alegre. O Rogério estava no caixa, como sempre fazia. Um cumprimento mal-humorado saiu de sua boca quando passei por ele. Uma televisão transmitia a partida do seu time do coração e, pelo seu semblante, não ia nada bem. Peguei os itens e voltei para casa o mais rápido que pude. Larguei as sacolas na cozinha e gritei avisando minha mãe que eu chegara.

Fubá, açúcar, leite, farinha e um pote de fermento químico. Depois de inventariar os ingredientes ela conferiu as sacolas novamente. Estranhei o fato e perguntei se ela precisava de ajuda. Ela disse que sim, precisava de ajuda para comprar outro item. Eu conferi todas as sacolas e, traído pela minha memória, percebi que esquecera de um item que não pode faltar na receita, o queijo ralado. Fiquei com raiva, não por ter esquecido o ingrediente, coisas assim acontecem, mas porque não era possível concluir a receita sem ele. Minha mãe teria de esperar eu retornar para iniciar o processo e, assim, eu teria de esperar mais para degustar a iguaria tenra e adocicada de milho.

Corri até a mercearia do Rogério na busca do famigerado queijo ralado. Se eu não tivesse esquecido do bendito ingrediente, não teria passado por aquela situação. Eu entrei correndo e fui direto para a prateleira onde ficavam as massas e os molhos prontos de tomate. Precisava de dois pacotes grandes, de cem gramas cada, para ter a receita. Escolhi uma marca intermediária, afinal o resultado depende da qualidade de cada ingrediente e, com um queijo de qualidade duvidosa, poria o bolo em risco. Porém, não queria abusar da gentileza da minha mãe e gastar todo o seu dinheiro. Avistei a embalagem rápido, ela estava presa a um clipe de metal na altura do rosto. É aquele tipo de saco plástico que foi cheio mecanicamente e com uma linha picotada. Eu estendi a mão e antes de separar os dois pacotes que procurava, ouvi o anúncio do assalto.

É incrível como alguns eventos nos marcam e relativizam o tempo. Einstein sugeriu e, muitos experimentos comprovaram a sua tese, que a passagem do tempo pode ser diferente para objetos que viajam a velocidades próximas à velocidade da luz ou que orbitem corpos extremamente grandes. Porém, a teoria da relatividade não pode demonstrar a minha percepção de passagem do tempo naquele momento. Há quem diga que a percepção temporal é subjetiva, enquanto a neurociência ainda busca entender como o nosso cérebro percebe a passagem do tempo. Se adicionarmos uma variável qualitativa e esta equação, podemos discorrer sobre o valor do tempo objetivo, por exemplo, quanto vale um segundo ou um milésimo de segundo. Quando estamos sob forte estresse, o cérebro tende a armazenar uma quantidade muito grande de informações do que em uma situação normal. Por isso, podemos lembrar de muitos detalhes. Quem não se recorda de muitas situações e experiências vividas no dia em que perdemos alguém que amamos? Ou do que fazia quando recebeu a notícia de que teria um filho? Eu sei que a partir do momento em que ouvi a frase “pro chão, é um assalto!”, meu cérebro apertou o botão de gravação em alta definição.

O tempo pode nos escravizar de várias formas. Podemos viver presos a um passado, ruminando dores e experimentando o sofrimento dia após dia. Podemos viver na espera de um futuro que está sempre no horizonte. Porém, eu acredito que a faceta mais perniciosa do tempo é o presente. Ele é o limiar entre o passado e o futuro. Quando nos damos conta e percebemos o presente, ele escorre pelos dedos como areia fina e se torna um passado saudosista. Ou quando experimentamos a excitação dos momentos em que antecedem uma conquista. Aquele momento antes de sermos surpreendidos pela alegria, como diria Lewis. Ou a angústia de esperar por um futuro que nunca chega. Eu não tenho resposta para a pergunta “o quanto vale o tempo?” ou “como lidar com os acontecimentos passados e futuros?”. Não acredito em respostas fáceis para problemas complexos. Talvez isso nem seja um problema para você. Eu acredito que a resposta dependa da psicologia, da neurociência e até mesmo do mundo quântico dos impulsos elétricos do nosso cérebro. O que quero ressaltar é que eu me espanto com a riquezas de detalhes que lembro daquela situação mesmo após tantos anos, para lá de vinte e cinco.

Voltando aos fatos, depois de uma divagação. Eu estava destacando os pacotes de queijo ralado quando dois homens armados entraram na mercearia. O primeiro abordou o Rogério que estava no caixa, enquanto o segundo caminhou até mim. Éramos cinco pessoas dentro do estabelecimento. Eu, o Rogério, os dois assaltantes e o menino que atendia o balcão de frios.

Menos de um segundo após o anúncio, esta é minha percepção relativa de tempo, o segundo assaltante estava com um revólver calibre 38 prateado apontado para minha cabeça.

- Que é isso truta. Vai com calma. Vamos conversar. – estas foram as minhas tolas palavras enquanto levantava os braços devagar.

- Calma nada, vai pro chão!

O ladrão magricela me atingiu com uma rasteira e eu me estatelei no chão. Depois, ganhei três chutes na barriga que me deixaram com hematomas por dias.

Em seguida, o outro vagabundo arrastou o Rogério pelo colarinho e o jogou no chão com a habilidade de um judoca faixa preta. Neste momento eu estava deitado, rosto ao chão. O bandido encostou a pistola preta na cabeça de Rogério, que repousava nas solas dos meus pés.

- Cadê o dinheiro?

- Você já limpou o caixa.

- Só essa mixaria? Vou te matar, vacilão!

- Tem mais isso aqui no meu bolso. – disse o comerciante, retirando algumas cédulas de cinquenta reais do camisa.

- Você merece morrer, otário. Trabalhar por essa mixaria!

Com toda a agilidade que tinha e com a experiência que os filmes americanos de guerra de deram, quando eu vi o bandido colocar o dedo no gatilho com a arma encostada na cabeça do Rogério, eu rastejei por baixo das prateleiras e alcancei o fundo da loja. Com a astúcia de um gato eu saltei sobre o balcão refrigerado e me escondi.

- Mano! De onde tu veio? Susto do caramba! – perguntou Élcio, o menino que atendia atrás do balcão.

- Cala a boca mano. Os caras ainda estão lá na frente com o Rogério.

- Mata esse cara! Mata esse cara! – esbravejava o assaltante que havia me rendido.

- Pelo amor de Deus. Não faz isso não. Já dei tudo o que tenho. Não me mata não. – dizia Rogério com a voz embargada.

Ouvi alguns gemidos entre muitos xingamentos. O Rogério ganhou muito mais hematomas do que eu, além de uma coronhada que lhe cortou o couro cabeludo. Antes de saírem, um dos bandidos derrubou uma prateleira onde ficavam os salgadinhos, próxima a porta da loja. Eu me levantei com cuidado para verificar se os assaltantes já haviam saído do local.

- Os caras já foram. Vamos lá para frente! – disse para o Élcio.

- Tudo bem com você, Rogério? – indaguei.

- Ainda bem que eu tinha já feito a sangria do caixa.

- Que merda, mano. Achei que o cara iria te matar.

- Que nada. O vagabundo só queria assustar.

- Já aconteceu antes?

- Esta semana foi a primeira vez. Já perdi as contas de quantas vezes fui assaltado. Vou vender isso aqui. Não aguento mais.

- Nem imagino como é passar por isso várias vezes.

- Já acostumei. Aliás, onde você foi parar? Você estava do meu lado. Eu pisquei e você já não estava lá.

- Vixe. Me enfiei por baixo das prateleiras até o fundo. Depois, pulei o balcão.

- Levei um susto do caramba. O cara parecia um ninja. Do nada voou por cima do balcão. – comentou Élcio, com um sorriso no rosto.

- Sei lá, mano! O medo me deixou ligeiro.

- Vou fechar por hoje. Élcio, pega o ferro, vamos baixar as portas.

- Não vai ligar para a polícia? – perguntei.

- Pra quê? Não adianta. Já me falaram que para eu ter proteção, precisa pagar para a ronda passar por aqui mais vezes. Aqueles coxinhas!

- Zoado isso.

- Bora!

- Calma aí. Preciso pegar meu queijo ralado.

Saquei o dinheiro que ainda estava no meu bolso e paguei pelo ingrediente. Aguardei até que as portas fossem baixadas e caminhei para casa. Élcio caminhou comigo a maior parte do caminho, ele morava no mesmo quarteirão que eu, exatamente do outro lado. O quintal de sua casa fazia fundos com o quintal da minha. Quando estava bem próximo, vi minha mãe saindo pelo portão.

- Falou ninja! – gritou Élcio antes de virar a esquina. Lembro que ele ficou um bom tempo me chamando por esse apelido. Toda vez que ele me via, fingia soltar uma bola de fumaça no chão, seguido de um movimento de um ninja aparecendo no local, de surpresa.

- Onde você estava menino? Que demora!

- Vixe, mãe. Maior zica eu ter esquecido esse queijo ralado.

- Que negócio de ninja é esse?

Nós passamos pelo portão e entramos em casa. Enquanto ela fazia o bolo, eu contava minhas aventuras para ela e meu pai.

Estar acostumado com a violência é uma triste realidade da periferia. Tão ruim quanto a violência é saber lidar com ela sendo ainda um adolescente. Infelizmente esta não foi a minha única experiência com assalto. Mesmo assim, sigo firme. Fé em Deus! Talvez você esperasse por outra história. Este foi meu primeiro assalto, embora tenha participado de forma passiva.

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