O NECROMANTE
A noite estava tranquila até que o alarme soou. Eu estava fazendo minha ronda sem grandes ocorrências. Acalmei uma pessoa dentro do seu veículo, enquanto passava por um ataque de pânico. Dei um empurrãozinho em um velhinho que atravessava a rua. Calma! Você já deve estar me julgando, mas se eu não fizesse isso, o coitado seria atropelado. Todas as coisas corriqueiras que chegavam pelo canal de comunicação.
De repente, eu ouvi um estrondo. Um trovão tão alto que parecia que o céu estava desabando por completo. Depois do som retumbar, um clamor de vozes se seguiu. Uma multidão gritava sem saber o que havia causado tamanho abalo. O alarme ecoou rapidamente, todos deveriam ficar em estado de alerta. Eu mesmo nunca ouvira aquele sinal, tanto que até demorei para entender do que se tratava. Já tinha escutado histórias a respeito, mas nunca presenciara uma situação como aquela.
Eu estava próximo da região da ocorrência e me dirigi para o local rapidamente. Um homem negro, alto e forte, vestido com roupas brancas dizia palavras antigas. Ao redor dele, diversas mulheres, com trajes ritualísticos, dançavam em frenesi o rodeando. Próximo a ele, junto a seus pés, uma figura estava imóvel. Não demorou muito até que as águas começassem a subir. Um forte vento soprou a névoa que tomou a avenida.
O ritual acontecia na cobertura de um alto prédio na zona sul de São Paulo. A maior parte das pessoas que transitavam o local não entendiam o que se passava. A névoa fria que surgiu de repente trazia certa apreensão. Porém, daria para contar nos dedos de uma mão os que realmente viam as circunstâncias. Um rio caudaloso começou a correr, embora estivesse em uma outra dimensão ruído causado pela sua forte corrente transcendia o véu que separa as realidades.
As águas pararam de subir quando atingiram o pavimento onde todos estavam. Uma pequena embarcação emergiu com duas figuras. O sacerdote negro ordenou que a dança parasse. O medo de uma realidade que estava encoberta aos seus olhos fez as mulheres irem ao chão. Ele estendeu o braço e uma das figuras caminhou em sua direção.
- Por que me fez subir, me trazendo de volta a perturbação deste tempo?
- Preciso de um conselho.
- Que informação eu posso dar agora que estou morto que não pude dar ainda vivo? O que seria tão importante para acrescentar esta magia proibida aos seus pecados?
- Nenhum dos espíritos me responde!
- Diga logo o que quer de mim!
- Onde escondeu o livro?
- Imaginei que você o tivesse encontrado, já que conseguiu me trazer de volta.
- Rápido, velho. O sangue daquela criatura te manterá só mais alguns instantes aqui.
- Eu o destruí.
- Mentira. Eu ainda posso sentir o poder se sua mágica agindo. Se o tivesse destruído, tudo teria desaparecido.
- Eu não posso mentir em meu estado.
- E o que faz a magia permanecer ativa?
- Alguém deve ter feito uma cópia.
- Quem mais sabia da existência dele?
- Seu irmão.
O sangue da criatura sacrificada para o ritual de necromancia já havia se extinguido. O espírito do velho voltava ao barco para descer novamente às profundezas, quando o negro sacou um objeto do bolso. Ele proferia palavras pesadas que amarravam o velho e tentavam o aprisionar no objeto. A outra figura que estava no barco tentou intervir, sem sucesso. O homem havia espalhado pequenos sacos com mojo para repelir o barqueiro.
Eu acompanhava tudo a uma distância capaz de não ser percebido. Sem saber o que fazer, eu esperava por reforços ou por alguma instrução de como lidar com a situação. Porém, ao perceber que o velho estava prestes a ser sugado para dentro do pequeno boneco de tecido, decidi intervir. Afinal, a prática é proibida desde eras antigas.
Entretanto, uma figura chamou a minha atenção no momento em que eu interromperia o ritual. Um outro homem saiu por uma porta que dava para dentro do apartamento. Ele trajava um manto escuro e possuía cabelos e barbas curtas e brancas. Ele caminhou até bem próximo do barco e, com um gesto, ordenou que o espírito do velho fosse libertado. O barqueiro e o velho submergiram rapidamente e o rio desapareceu. Os dois olharam encostados no parapeito da cobertura e, confesso que fiquei surpreso, o homem coberto pelo manto preto apontou em minha direção. Naquela hora eu percebi que algo maior e muito mais perigoso estava acontecendo.
O negro que conduzia o ritual se chamava Clayton, era do Haiti, foi criado nas ciências ocultas e, pelo que vi, nas proibidas também. O outro homem mais velho a quem ele servia era o Joaquim. Os dois me encararam alguns minutos. Depois, fui informado pelo nosso canal de comunicação que deveria deixar o local. A missão era segui-los e descobrir o que estavam tramando ou, pelo menos, destruir o artefato que os permitia realizar tamanha ciência. Você pode se perguntar por que eu chamo isso de ciência. O que é a magia senão a ciência que se utiliza de elementos de mais de uma realidade? Bem, me retirei do local. Um outro enviado já fazia sentinela numa posição que ainda não havia sido descoberta. Caso houvesse alguma movimentação ele me avisaria.
Eu fui acionado poucas horas mais tarde. Joaquim e Clayton deixaram a cobertura do bairro nobre da zona sul em uma Lange Rover azul. O carro era fácil de ser identificado no trânsito que, mesmo de madrugada, existe em São Paulo. O motorista deixou Joaquim no aeroporto de Congonhas. Neste momento, estava num impasse. Joaquim era o líder, mas Clayton era o sacerdote. Seguir Clayton seria encontrar o artefato que precisávamos destruir. Porém, Joaquim era o articulador de tudo, segui-lo poderia contribuir para desarticular algo muito maior. Fazia tempos que ele estava em nossa lista de pessoas perigosas.
Avisei meus companheiros que era necessário enviar alguém para seguir o chefe, enquanto eu seguia o sacerdote. O ritual de necromancia chama muita atenção. Eles sabiam que seriam descobertos e mesmo assim decidiram que valia o risco. Clayton era um dos poucos homens que poderia realizá-lo. O carro seguiu para São Roque, na região metropolitana da capital, até uma chácara. O sacerdote desceu do carro, pegou o celular no bolso e discou. A discussão foi intensa. O motorista deixou o local assim que os portões se abriram, alguns minutos depois da ligação se encerrar.
O local era muito bem protegido, além de ser sinistro. Uma escuridão escondia o lugar. Mesmo com a lua cheia brilhando no céu sem nuvens, era impossível enxergar qualquer coisa dentro da propriedade. Corri por todo o perímetro do imóvel na expectativa de encontrar alguma falha ou ponto cego na segurança. Quando eu estava no lado oposto do portão, no meio da mata, ouvi um estrondo vindo da casa que ficava no meio do extenso terreno. Não vi alternativa se não invadir o local, ainda que houvesse grande chance de ser descoberto.
Pulei o muro e segui até a casa. A construção possuía muitas janelas e paredes de vidro. Do lado de dentro, uma decoração moderna, com objetos de arte espalhados pelos amplos cômodos. Eu reconheci algumas das obras. Na verdade, não se tratava de arte, mas eram instrumentos de rituais que eu nem imaginava que ainda existiam. Muitos deles proibidos desde tempos antigos. Dois homens discutiam no escritório. Clayton se exaltou e esmurrou a mesa. O homem que escutava as reclamações do sacerdote se levantou e caminhou até a janela. Eu fiquei surpreso ao perceber que ele era idêntico a Clayton. Ele tinha um irmão gêmeo. A discussão seguiu.
- Não adianta Clayton. Não há nenhum argumento que me convença de te entregar o livro.
- Robson! Por favor, me escute. Joaquim já sabe que o livro está contigo. Se você não o entregar, ele vai te matar.
- Deixe que ele tente. Não tenho medo daquele velho arrogante.
- Você desconhece os seus poderes. Ele é perigoso.
- Não importa. Ele só o terá se me matar.
- Você não entende, não é? Se você não entregar o livro, ele vai fazer eu te matar.
Robson encarou o irmão por um instante com olhos tristes. Ele acionou um dispositivo embaixo da mesa. De repente, uma parte do piso se elevou e revelou um cofre. Robson colocou a mão sobre um leitor na porta da caixa forte e ela se abriu. Retirou um pacote envolto em um tecido antigo.
- Você não tem força para isso. Você sempre foi o mais fraco. E garanto a você meu irmão. Não importa o quanto você evoluiu, você não será capaz de me subjugar.
Eu já estava dentro da sala da casa quando as luzes de toda a propriedade se apagaram. Imaginei que tinha sido descoberto. Nem pensei em fugir. Pelo contrário, me vi forçado revelar minha posição. Porém, quando as luzes voltaram, fui surpreendido mais uma vez. Joaquim apareceu na poltrona ao lado de Clayton. Os dois irmãos se assustaram com a aparição do velho.
- Vamos Robson. Entregue o livro.
- Boa noite, Joaquim. Não vou te entregar e, em respeito a amizade que tínhamos, vou permitir que você saia da minha casa ileso.
O velho soltou uma gargalhada arrogante.
- Joaquim? Já faz muito tempo que aquele velho se foi.
Todos se espantaram com a revelação. O velho demônio se levantou e meteu a mão no livro, que permanecia envolto num tecido, sobre a mesa. Eu estava escondido atrás do sofá, na sala de estar. Uma figura surgiu na porta, do lado de fora. Uma mulher muito bonita, cabelos castanhos encaracolados e longos, lábios carnudos e um olhar que me chamou atenção. Seus olhos eram pálidos e sem vida. Uma membrana opaca e esbranquiçada cobria os olhos negros. Ela entrou e passou por mim como se eu não existisse. Ela entrou no escritório e com uma das mãos, tomou o livro do velho e, sem nenhum esforço, o arremessou através da parede de vidro.
- Raquel? – indagou Clayton.
- Não se mexa, meu irmão. Se ela decidir que você é uma ameaça para mim, ela te matará.
- O que você fez, Robson?
- Eu não podia deixá-la morrer.
- Mas ela está morta!
- Por pouco tempo! Tive de transformá-la ou seu corpo se deterioraria.
- Como você fez isso?
- Esta parte foi fácil. O feitiço mantém uma ligação inviolável entre ela e eu, já que eu a transformei.
- Faz quanto tempo que ela está assim?
- Dois anos.
- Desde que você nos deixou.
- Eu casei com Raquel uma semana depois que decidi me afastar de vocês e suas ambições. Porém, ela passou muito mal. Fomos até um médico e descobrimos que estava com o abdômen cheio de tumores. Em dois dias ela já estava morta. Decidi que faria o ritual para transformá-la em zumbi até eu encontrar um jeito de trazer sua alma de volta, de forma definitiva.
- E o câncer? Não continuará matando o seu corpo?
- Esta foi uma das boas surpresas que tive. De alguma forma, enquanto está neste estado catatônico, seu corpo se recuperou.
- Como você sabia como fazer o ritual?
- Eu já tinha encontrado o livro muito tempo antes de deixar vocês.
- Como? Por que?
- Nunca confiei naquele velho. O livro seria perigoso nas mãos de um homem como aquele.
- Este tempo todo! Você é realmente um traidor, Robson.
- Pegue o velho e suma da minha frente. Se vocês voltarem aqui, não sairão com vida.
Eu continuava escondido na sala de estar. Vi o velho destruir a parede de vidro e agonizar no chão. Porém, após tossir espalhando sangue por todo o ambiente, a gargalhada tenebrosa ecoou novamente. Clayton lembrou-se de Joaquim e decidiu que faria conforme o irmão pedira. Com aquele zumbi com força sobre-humana ao lado do irmão, seria impossível derrotá-lo. A cada instante a gargalhada aumentava. O velho passou a tremer e as convulsões faziam o corpo pular do chão. Seus braços se contorciam e o rosto deformava de dor. Um movimento brusco plantou os pés dele no chão e as pernas se firmaram. Porém, sua cabeça permanecia caída. Os estalos de sua coluna quebrando eram agonizantes. De repente, o tronco se ergueu e o velho ficou ereto.
- Joaquim! Você está bem? – perguntou Clayton, assustado com os movimentos dele.
- Já disse que o Joaquim não existe mais!
O corpo do velho começou a se desfazer numa metamorfose infernal. Primeiro, ele caiu de joelhos e apoiou as mãos no chão. Seus membros se rasgaram e deram lugar a dois pares de patas, das suas costelas surgiram outros dois pares. Os ossos de sua coluna se multiplicaram dando forma a uma calda. Seu corpo era semelhante ao de um escorpião, mas possuía um longo pescoço, com uma mandíbula que se expandia e na sua boca, presas que destilavam peçonha uma língua bifurcada, como de uma cobra. Ele avançou contra os irmãos e pegou o livro.
O zumbi atacou o demônio. Porém, foi empalado com uma ferroada da calda do monstro. Clayton estava horrorizado com a cena e, dominado pelo medo, ficou paralisado. Robson sacou uma arma e disparou contra a besta e acertou seu braço. O livro caiu no chão e deslisou pelo piso até próximo a mim. O sacerdote, apesar de imóvel, passou a recitar um encantamento.
- Você acha que suas palavras conseguirão me deter? Se esqueceu que fui eu quem as ensinou? Não pode usar o mal para combater o mal! – disse o velho, e disparou seu veneno contra Clayton.
O líquido viscoso atingiu o rosto do sacerdote e começou a queimar sua pele. Entre os urros de dor do irmão, Robson avançou contra a besta. Ele precisava retomar o livro para regenerar o corpo de seu zumbi e curar o irmão. A vitória do demônio parecia certa, então, não tive alternativa a não ser me revelar. Eu me pus em pé e resgatei o livro que estava próximo. Quando o demônio tentou me atacar eu abri as minhas asas e a luz que emanou de mim o afugentou.
- O que você quer aqui? O tempo do meu julgamento ainda não chegou.
- Basta! Esta relíquia não deveria ter sido trazida de volta aos homens.
Eu invoquei a chama da alva e minha mão brilhou. O livro ficou incandescente e foi consumido pelas labaredas. Joaquim desapareceu no ar sem deixar rastros.
- Por que fez isso? – Robson gritava comigo e disparava sua arma novamente. – Como eu vou trazê-la de volta?
- Não há como fazer isso. Se não fosse eu, alguma outra provisão se manifestaria para impedir o que pretendia.
Robson prostou-se de joelhos junto ao corpo da esposa. Então, eu me aproximei e toquei o corpo de Raquel. A aparência cadavérica desapareceu. Percebi uma centelha de esperança tomar o coração do homem.
- Não posso trazer sua amada de volta a vida. Porém, agora você pode dar um enterro digno a sua esposa e enterrá-la como a mulher que era e não como o monstro que você criou.
Depois, caminhei até Clayton, limpei o seu rosto e curei suas feridas.
- Eu não sei bem o que dizer. Obrigado!
- Não precisa dizer nada. Eu fui enviado aqui com um propósito e você deve agradecer a quem me enviou.
- E quem é ele?
- Você descobrirá quando ele se revelar a você.
- E quanto ao meu irmão?
- Ele será encontrado também.
- O que devo fazer agora?
- Não sei. Esta é uma demanda que não me coube saber. Vá e ajude o seu irmão. Vocês não devem retornar mais a este lugar.
Eu aguardei os irmãos sepultarem o corpo de Raquel. Quando eles terminaram, pedi para que se retirassem e não olhassem para trás. Enquanto eles partiam, invoquei a chama da alva novamente. As relíquias que estavam na casa se abrasaram e o fogo consumiu todo o lugar.
Finalmente, recolhi minhas asas e acalmei o espírito. Agora, eu me passaria como um homem qualquer mais uma vez. Esta foi a primeira experiência que tive com a necromancia, não sabia que aquilo era possível. O fato me fez refletir no poder que ainda corre nas veias dos homens e como as realidades estão mais próximas do que pensava. Será que os homens abrirão as portas para as outras dimensões? Será que é possível que as mentes deles possam conceber tal verdade? Bem, pensei muitas outras questões naquela noite. Este, também, foi meu primeiro contato com a humanidade. Estou ansioso para saber quais surpresas me aguardam. Quanto aos irmãos Clayton e Robson, nossos caminhos ainda se cruzarão muitas vezes.
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