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VÍCIOS

Conto: Vícios
Autor: Soaréstes Santos

Gabriel abriu os olhos com dificuldade. A cabeça pulsava a cada batida do coração. Tentou mover-se, mas percebeu que estava preso numa cama. No canto distante do cômodo, viu a silhueta de alguém sentado em uma cadeira. Seus olhos brilhavam estranhamente no meio da escuridão.

- Onde está minha irmã? – Indagou Gabriel, tentando soltar-se.

Enquanto agonizava preso à cama, ouviu passos. Alguém se aproximava. Uma porta se abriu e a luz se acendeu. Ele olhou para cama ao lado e se deparou com o corpo de sua irmã gêmea, Janaina. Uma expressão de terror permanecia no rosto da defunta degolada.

- Testes concluídos. O indivíduo número cem reagiu bem ao componente. O fígado da viciada foi totalmente recuperado e o transplantado passa bem. Os rins deste outro estavam bem, nem precisamos aplicar a droga nele. Pode terminar seu ritual. – Disse o homem que entrou pela porta.

Gabriel olhava incrédulo o homem que trajava roupas azuis, avental, touca e luvas ainda manchadas de sangue. Parecia um médico saído de uma cirurgia.

- Meu Deus! Socorro! – Gritou ele, lembrando de como chegara ali.

Gabriel trabalhava numa loja de artigos importados na Rua 25 de Março, no centro da capital paulista. Todos os dias, depois de sair do trabalho, ele caminhava até o cruzamento entre as Ruas Mauá e dos Protestantes e deixava uma marmita enrolada em um saco de lixo branco, dentro de uma lixeira e partia em direção a Estação da Luz. Às vezes, ele aguardava escondido atrás de uma árvore e via a irmã viciada em crack pegar o alimento.

Naquele sábado, ao chegar no local, preocupou-se.  Havia dois sacos brancos na lixeira. Sua irmã não comia há pelo menos dois dias. De vez em quando, ele encontrava a comida do dia anterior. A loucura do vício fazia com que ela esquecesse de comer, mas por dois dias seguidos, isso nunca tinha acontecido.

Apesar do perigo, Gabriel decidiu caminhar pela cracolândia em busca de Janaína. Aquele sentimento que só irmãos gêmeos possuem estava latente em seu coração, ele tinha certeza de que ela corria perigo. Quando chegou na esquina da Aurora com a Santa Ifigênia, encontrou o ex-namorado da irmã, também viciado.

- Lucão, cadê a Janaína? – Falou em alta voz.

O viciado se encolheu por instinto. Quando abordado, ou era para apanhar de algum traficante a quem devia, ou era assalto de outros viciados.

- Lucão! Sou eu, Gabriel. Você viu a Janaína? – Disse o jovem enquanto erguia do chão aquele corpo ressequido.

O rosto do viciado aliviou-se quando reconheceu a face amiga.

- Tem dez conto? Tô precisando de uma pedra!

Gabriel irritou-se e largou o corpo do viciado, que caiu no chão. Lucão começou a tremer, seus olhos reviravam e seu corpo se contorcia. Ele limitou-se a colocá-lo de lado para evitar que se afogasse no próprio vômito. Apesar da cena ser chocante, não era a primeira vez que assistia um drogado em crise de abstinência. Ele sentou no meio fio e esperou o moribundo recobrar a consciência.

Minutos depois, Lucão acordou e, olhando para o amigo começou a chorar.

- Eu a amava. Nunca quis que ela parasse aqui comigo.

- Isso não é amor, seu merda. Onde está minha irmã?

- Não sei, faz dois dias que ela sumiu.

- Desembucha. Para onde ela foi?

- Uma ambulância a levou.

- Como assim?

- Não sei. Só lembro que uma ambulância parou e dois caras colocaram ela para dentro do carro.

- Isso não faz sentido.

- Tem dez conto?

Gabriel, percebendo que o instante de lucidez do viciado terminara, levantou e continuou a busca.

Enquanto caminhava, parou por um instante no meio da rua. Contemplou a multidão de zumbis. Parecia a cena de um filme apocalíptico. Centenas de viciados perambulando sem rumo. De repente, uma figura chamou sua atenção. Um homem vestido de preto, carregando uma maleta caminhava no meio da aglomeração. Sua roupa era nova, sapatos lustrados, um rosto sadio. Ele não era um viciado. O homem aproximou-se dele e disse:

- Cinco pedras por um frasco de sangue.

- Você é louco?

Imediatamente o homem deu as costas e voltou a caminhar no meio dos drogados. Demorou apenas alguns segundos para Gabriel associar o homem ao que Lucão havia dito sobre uma ambulância.

O jovem seguiu o homem sem ser notado. Sua técnica de disfarce foi desenvolvida para não ser notado pelos traficantes da região, quando procurava pela irmã.

Gabriel achegou-se a um grupo de crentes que serviam um sopão. Enquanto uns serviam o alimento, outros cantavam acompanhados de um violão. Ele, porém, não perdia de vista o homem. Notou quando um viciado permitiu ter o sangue colhido. Depois de guardar o frasco de sangue, o homem fotografou o viciado e pagou as cinco pedras de crack que prometera.

De repente, um silencio tomou conta do ar. Gabriel olhou para o grupo dos crentes que começaram a fazer algum tipo de oração. Um outro homem vestido de preto passava ao lado do grupo. Ele caminhava com o rosto abaixado, a cabeça coberta por um chapéu.  A medida que se aproximava, um terror tomava conta de Gabriel. Ao passar por ele, o homem levantou a cabeça e o encarou. Seus olhos totalmente negros carregavam a mais pura maldade. O jovem permaneceu em transe até que alguém do grupo o chamou.

- Moço, está tudo bem?

- Sim. Acho que está.

- Você sentiu também alguma coisa quando aquele cara passou por aqui?

Gabriel não respondeu. Olhou para a multidão de drogados e avistou os homens de longe, que eram acompanhados por um viciado. Assim que chegaram na Avenida Cásper Líbero, entraram em uma ambulância que os aguardava. Ele correu, mas quando alcançou a avenida o carro já estava longe demais para enxergar a placa. Gabriel lembrou de Lucão, voltou ao local onde o havia abandonado, mas ele não estava lá. Procurou por ele a noite inteira, mas não o encontrou.

Na noite seguinte, Gabriel fez campanha na Avenida Cásper Líbero, onde tinha visto a ambulância. Ele estava acompanhado de André, um camelô que trabalhava na Ladeira Porto Geral, amigo desde a infância e que conhecia Janaína. Não demorou muito e a ambulância apareceu. Mais uma vez os dois homens de preto carregavam um viciado.

Os parceiros montaram na moto e seguiram o carro até a Avenida do Estado, perto do Mercado Municipal. Lá havia um prédio que parecia abandonado. Antes de o veículo entrar no terreno, um dos homens saltou e entrou em outro carro, certamente voltaria à cracolândia para raptar mais um viciado.

- Caramba, Gabriel! Quem são estes caras?

- Não sei. Me pergunto há quanto tempo fazem isso!

- Não deve fazer muito tempo. Você sabe que conheço todo mundo aqui no centro e nunca ouvi falar de sumiços como estes.

- Este é o problema. Estão sumindo com gente que ninguém procura. Se um viciado some, ninguém sente falta.

Eles passaram em frente ao prédio e estacionaram mais adiante. Observaram bem e viram que poderiam entrar no local sem serem vistos.

Assim que invadiram o lugar, perceberam que não era um prédio abandonado. Pelo menos, parte dele. Uma escada descia para o subsolo e lá havia um espaço acabado, com revestimentos brancos nas paredes e um piso verde. Parecia um hospital!

Os dois caminharam pelo longo corredor. Observavam, pelas janelas das portas, vários corpos mutilados dentro das salas. Na primeira, um corpo sem os membros. Na segunda, um corpo serrado ao meio, as duas metades postas uma de frente para a outra fazia com que o defunto encarasse sua outra metade. Algumas portas depois, viram alguém que parecia vivo numa cama. A pessoa tinha a cabeça envolta por uma faixa branca. Alguns monitores indicavam os sinais vitais. Parecia se recuperar de uma cirurgia.

Continuaram a caminhada e desceram mais um andar. Ouviram vozes, havia movimento na sala mais próxima. Com cuidado, Gabriel olhou pela janela da porta. Uma pessoa injetava com uma seringa alguma coisa no soro que alimentava a veia da vítima na cama. Instantes depois, ela gritava assustadoramente.

- Me mate, por favor, me mate! – Bradava a vítima.

- Não se preocupe. Isto está limpando seu organismo. Esta dor continuará por mais um pouco apenas. Depois disso, seus rins estarão prontos para serem transplantados. – Disse a pessoa que havia aplicado a medicação.

Gabriel levou a mão à boca para segurar o vômito. Ele estava atordoado, milhares de pensamentos passavam por sua cabeça. Teria sido este o triste fim de sua irmã?

- Psiu! – Sussurrou André.

Gabriel olhou em direção ao amigo mais adiante no corredor. Ele entendeu o gesto e caminhou em sua direção. Ao olhar pela janela da porta do quarto avistou o homem de olhos negros. Ele acendia algumas velas aos pés da cama, enquanto entoava uma melodia macabra, numa língua que os dois desconheciam. Ele tomou um punhal e rasgou o pescoço da vítima na cama, fazendo o sangue jorrar pelo quarto. De repente, as luzes ficaram mais fracas, Gabriel percebeu uma estranha aura sobre o corpo da vítima. O homem tirou o chapéu e os olhos negros se tornaram vermelhos flamejantes. A alma da vítima era sugada pelos olhos daquele demônio.

Gabriel tentou correr, mas era tarde demais. Alguns homens trancavam o caminho por onde tinha vindo. Quando tentou correr para o outro lado, sentiu a pancada na cabeça e apagou. Ao despertar, abriu os olhos com dificuldade. Após alguém acender a luz do quarto, ele se deparou com o corpo de sua irmã gêmea, Janaina, degolado. Enquanto o médico terminava a fala, viu o amigo André, usando um terno preto, na porta do quarto.

- Isso pode dar problemas. Tem certeza de que eles não têm nenhum parente? – Indagou o médico a André.

- Sim. Somente ele e a irmã viciada. Ninguém os procurará.

- Tudo certo. Retire seu pagamento com o pessoal de apoio.

- Este aí está saudável, não vale um pouco mais?

- Ok. Cinco mil a mais.

- Você pode terminar seu ritual. – Disse o médico apontando para o homem de olhos negros que estava sentado no canto da sala.

O homem acendeu algumas velas aos pés da cama e começou a entoar alguns cânticos.

- Meu Deus! Socorro! – Gritou Gabriel.

André olhou por cima dos ombros e abandonou o quarto, junto do médico. Os gritos da vítima silenciaram e a música macabra continuou. A noite estava apenas começando. Havia mais viciados para serem recolhidos.

 

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