NEGRONI parte 1
Aviso: Este conto
possui descrição de cenas de violência e linguagem forte. Não é recomendado
para crianças.
Fazia frio naquela noite em São Paulo, o vento gelado e a fina garoa que caía ajudavam a piorar a sensação térmica. Alexandre morava perto do trabalho, pouco mais de quinze minutos de caminhada. A localização do apartamento foi determinante na decisão de assinar o contrato de aluguel por um prazo de três anos. Apenas em dias gelados como aquele é que ele sentia falta do carro. Mesmo assim, preferia caminhar sob o vento cortante a chamar um transporte no aplicativo. O percurso demoraria pelo menos o tripo do tempo que levava a pé, além da espera. O bairro do Itaim Bibi, em São Paulo, um dos centros financeiros da capital, é um local desejado. Diversas empresas globais estão instaladas lá, além de advogados refinados, gigantes de tecnologia, incubadoras de Startups e escritórios compartilhados.
Alexandre estava cansado, saiu de um plantão de vinte e quatro horas do hospital onde trabalhava. Ele era médico hematologista e, apesar da pouca idade, era cotado para ser o líder da área na rede de saúde. Antes de ir para casa, resolveu parar no lounge bar que ficava no meio do caminho entre a casa e o trabalho. O local requintado é de sede um clube de associados que apreciam a tabacaria, as bebidas e uma boa refeição. Um salão amplo com acabamento de diferentes tipos de madeira no piso e nas paredes davam o tom sóbrio do local. Poltronas de couro cercando pequenas mesas de centro criam uma sensação intimista, buscada por amigos enquanto bebem e apreciam seus charutos. Uma área especialmente caracterizada, com umidade, luz e temperatura controladas abrigam as iguarias que a casa vende. Um bar com uma variedade e qualidade encantadoras completam o ambiente.
O médico queria espairecer os pensamentos e aquietar o coração. Enquanto trabalhava era totalmente dedicado ao exercício da profissão, mas assim que deixava o hospital, todas as suas frustrações e tristezas os atormentava. Ele aproveitou a água fria que se precipitava na capital paulista para esconder as lágrimas e, quem sabe, aliviar a alma. Antes de entrar no lounge, enxugou os olhos. Quando passou pela porta e deixou o sobretudo pesado na chapelaria, vestiu sua máscara de homem bem-sucedido, por vezes ensaiava um sorriso no canto da boca quando era cumprimentado por conhecidos. Foi direto ao bar e se sentou.
- Boa noite, Doutor. Como vai?
- O que é isso, Nei. Sabe que não precisa de chamar assim.
- Desculpe, força do hábito. Boa noite, Alexandre. Como vai?
- Caminhando. – respondeu pensativo.
O bartender percebeu que o homem não estava para muito papo aquele dia, embora tivesse sido educado como sempre. Não esperou o médico pedir a bebida, era cliente de longa data, mesmo antes de trabalhar no hospital próximo. Ney pegou um copo baixo e largo e colocou uma grande pedra de gelo, um dos segredos no preparo e que ajuda na conservação do sabor do drink por ter menos derretimento. Depois, adicionou trinta mililitros de vermute, trinta mililitros de Campari e trinta mililitros de gin. A receita fácil e de sabor equilibrado pode ser feita por qualquer um, desde que seja respeitada a proporção de três partes iguais das bebidas. Uma colher de cabo longo deslizou dentro do copo e empurrou o gelo, o fazendo girar para atingir a temperatura ideal de apreciação do drink. A guarnição que finaliza a bebida foi uma casca de laranja fresca, delicadamente torcida sobre a borda do copo e mergulhada no líquido. O Negroni bem feito tem o equilíbrio certo entre o amargor do Campari e o dulçor vermute, com a base aromática e seca do gin, concluindo com as notas cítricas da casca da laranja.
Alexandre cerrou os olhos e inspirou perto do copo. Levou a bebida à boca e apreciou cada gole que banhava suas papilas. O ritual que executava para consumir a bebida foi ensinado pelo pai. Alguns instantes depois, ao abrir os olhos, percebeu uma linda mulher sentada ao seu lado. Um vestido preto, bem ajustado e sapatos pretos com longos saltos em vermelho completavam o visual cativante da moça. Ela encarava as mãos que descansavam sobre o balcão.
- Boa noite, Senhorita. O que posso servir? – perguntou Nei.
- Um Negroni igual ao dele. – respondeu apontando para o copo do médico que já estava pela metade.
- Peculiar o pedido. – comentou Alexandre.
- Por que?
- O paladar feminino prefere bebidas mais suaves e doces.
- No início até podia ser assim. Porém, meu paladar mudou muito ao longo do tempo. Além disso, esse drink me faz lembrar do Camilo. Estava lá quando ele bebeu pela primeira vez.
- Uma boa lembrança sempre tem amigos ao redor de uma mesa, comendo ou bebendo.
- Sim. Já faz tempo.
- Aqui está, senhorita. Deseja algo mais? – perguntou o bartender.
- Não. Obrigado.
A mulher levantou o copo e aguardou. Alexandre percebeu o gesto e tocou o copo dela com o seu, num brinde inesperado.
- Às boas lembranças e aos amigos!
- Às boas lembranças e aos amigos! – repetiu o médico.
A conversa continuou agradável e descontraída. Alexandre usava qualquer incentivo para manter a mente ocupada e não encarar a solidão que estava desde que sua esposa o abandonou. Pediram outra rodada de Negroni até que a mulher fez um convite que o surpreendeu.
- Agora, vou apreciar um bom charuto. Quer me acompanhar?
Alexandre não sabia se a moça tentava impressionar ou se sua personalidade era legítima. Não se importou com a verdade. Afinal, era uma mulher bonita, intrigante com um ótimo papo.
- Sim, podemos. Se me permite, uma última pergunta antes de irmos para o local onde poderemos tragar nosso tabaco.
- Claro. Pergunte.
- Qual o seu nome?
- Andréia.
Os dois se levantaram e foram para a área exclusiva do lounge. As horas se passaram rapidamente e, quando estavam na sexta rodada de Negroni, o garçom que os atendia informou que a casa fecharia em vinte minutos.
- Posso chamar um taxi para a senhorita? – perguntou o garçom.
Andréia pareceu reticente em responder. Ela olhou para Alexandre e aguardou em silêncio.
- Não precisa, obrigado. Ela irá comigo. – disse o médico, encarando a moça. - Pode trazer a conta, por favor? – emendou a pergunta.
- Hoje é por minha conta. – disse Andréia.
- De forma alguma. – replicou Alexandre.
- Eu pago as minhas próprias contas. Além disso, eu te chamei para apreciarmos os charutos. Eu pago.
- Cada um paga o seu?
- Não. Eu pago. Você fica me devendo uma bebida.
- Ok.
Os dois caminharam juntos até o apartamento de Alexandre. Por sorte ele havia contratado uma empregada e estava tudo em ordem. Se o encontro fosse uma semana antes, ele não teria coragem de levar uma mulher até lá, tamanha era a bagunça. Os seis Negronis que cada um havia bebido tornou o riso fácil e a boca mais ousada nos pedidos e nas respostas. Não demorou até que a luxúria dominasse os dois e eles se entregassem em paixão. Alexandre descarregou toda a tensão que mantivera represada e, Andréia, pareceu não se importar com a ferocidade do médico.
Na manhã seguinte, Alexandre acordou e se viu sozinho na cama. Se levantou e foi ao banheiro, mas não encontrou vestígios de Andréia. Por um instante até duvidou de que alguma mulher passara a noite com ele. Porém, ao se encarar no espelho percebeu as escoriações no peito e, depois, nas costas. As unhas de Andréia deixaram as marcas do sexo selvagem que eles tiveram. O médico sorriu ao perceber que não tinha sonhado e se deu conta que as marcas em sua boca foram mais ferozes. Seus lábios estavam feridos e sua língua tinha um corte profundo. Ele procurou pelo apartamento mais sinais de Andréia e encontrou um bilhete preso na porta da geladeira com um imã. “Quando você menos esperar eu vou aparecer para cobrar minha bebida! Beijos! Andréia” Não ter um número de telefone ou qualquer outro tipo de contato foi um pouco frustrante para o médico. O papel trazia, ao lado do nome, uma cruz ansata.
O médico decidiu descansar, estava exausto pelo ritmo de trabalho e aproveitaria o dia de folga após o plantão. Ele foi para a cama e dormiu um sono pesado e inquieto com pesadelos sangrentos. O sangue não era problema, pois além de médico, ele era hematologista, ou seja, um médico especialista em sangue e órgãos hematopoiéticos. O vermelho sempre estava em seus sonhos e isso não era ruim e nem sinal de mal agouro, já que era ateu.
Na manhã seguinte Alexandre acordou indisposto. Corpo dolorido, febre, dor na cabeça e olhos. Seu turno iniciaria somente na parte da tarde. Ele decidiu tomar alguns comprimidos que tinha e descansar mais a fim de melhorar. Quando despertou de seu sono, percebeu que tinha dormido por mais de vinte e quatro horas. Ele ligou para o hospital e disse estar com uma infecção e não poderia ir ao trabalho, já que tinha se tornado um vetor de alguma bactéria e adormeceu novamente. Acordou na madrugada seguinte e com dificuldade ele se levantou e foi ao banheiro. Sentiu a língua inchada e a examinou no espelho. A ferida estava cercada de tecido necrosado e um pus amarelo intenso jorrava do centro. Ele percebeu que estava pálido, seus olhos estavam profundos e com olheiras negras. Seu coração acelerou, ele precisava de ajuda, ligaria para a emergência, tinha de ir para o hospital e tratar aquela grave infecção, pois em sua análise de médico, corria risco de morrer se a bactéria se espalhasse. A visão ficou turva e suas pernas fraquejaram, no instante seguinte, desabou no chão do banheiro e bateu com a cabeça no vaso sanitário.
Foram mais vinte e quatro horas desacordado, sem sonhos ou pesadelos. Ele abriu os olhos e lembrou que tinha desmaiado. Palpou a cabeça com as mãos procurando por um corte, mas não encontrou. Lembrou da ferida na língua e se levantou rapidamente. A ferida no espelho era muito diferente de sua lembrança. Seu rosto estava corado e saudável, sua língua não tinha resquício de qualquer ferida. Ele se deu conta que as dores desapareceram, assim como as olheiras. Pensou ter tido muita sorte, a sepse poderia tê-lo matado. Ele fez mais alguns exames físicos para garantir que estava bem e decidiu ir para o trabalho. No hospital ele poderia realizar exames laboratoriais e de imagem para descobrir o que acontecera e se havia algum sintoma que ele não conseguia enxergar.
Enquanto caminhava, Alexandre sentiu uma fome tremenda. Fazia três dias que não comia, por isso, decidiu fazer uma parada na padaria mais próxima e abastecer o corpo com energia para continuar a recuperação, embora não sentisse nenhuma indisposição. Uma omelete de queijo e presunto, uma salada, um sanduíche de queijo branco e três litros de suco de laranja. Na fila do caixa o estômago ainda roncava, por isso decidiu levar um saco de pão de queijo e três sonhos. Estava espantado com a quantidade de comida que ingerira. E ficou mais surpreso ao perceber que no percurso até o hospital ele comeu tudo o que tinha comprado na padaria.
Ele fez a ronda com os residentes e visitou todos os pacientes na parte da manhã. Tinha se esquecido de fazer os exames para descobrir o que aconteceu e estava trabalhando em sua pesquisa. Não demorou até o estômago gritar de fome novamente. De repente, sentiu um aroma adocicado e ferroso preencher toda a sua sala. Sua boca salivava na expectativa de provar aquela delícia. Ele se levantou e seguiu o olfato. Como um cão de caça, abstraiu tudo ao seu redor e focou na missão de encontrar a fonte de tal perfume. A cada passo a fragrância tenra aumentava sua excitação. Subiu três andares pela escada de emergência e caminhou pelo corredor até o final. Levou sua mão à maçaneta e notou que a porta estava trancada. Ele forçou a entrada e nada aconteceu. No instante seguinte esmurrava a porta. Precisava descobrir o que despertou tamanho desejo. Seu transe foi interrompido pela voz de uma enfermeira.
- Doutor, você está bem?
Ele demorou um pouco até se localizar. Seu corpo chegara ali como guiado por um piloto automático.
- Sim, estou bem.
- O senhor precisa entrar?
Ele não sabia o que responder.
- O senhor está com o seu crachá?
- O que?
- Seu crachá doutor. Use o seu crachá para abrir a porta. O senhor tem acesso a esta área.
- Claro. Claro.
Ele retirou o crachá de identificação do jaleco e o aproximou da leitora. Um breve apito agudo tocou e a porta se abriu. Ele entrou e só então percebeu que estava no banco de sangue do hospital. Sua boca enchia de água como alguém que espera pelo prato favorito. Porém, seu lado racional de médico tomou as rédeas da situação e o impediu de fazer qualquer coisa. A curiosidade científica acendeu uma luz em sua mente perturbada com sensações desconhecidas. Ele foi até o laboratório de análise, colheu o seu sangue e pediu para que fizessem todos os testes a procura de alguma bactéria. Imaginou que o microrganismo ainda estivesse em seu sistema e, talvez, fosse a causa de seu comportamento estranho. Depois, seguiu para sua sala.
Enquanto esperava os resultados dos exames, foi buscar na literatura algo que explicasse seus sintomas.
- Alexandre! Preciso de ajuda!
O médico procurou quem era o dono da voz. Porém, sua sala continuava trancada e ele sozinho.
- Alexandre! Preciso de ajuda!
Ouviu a voz clara novamente. Ele se levantou e abriu a porta, imaginando que alguém o chamasse, mas o corredor estava vazio.
- Preciso de ajuda! Rápido! Aqui embaixo.
Ele saiu da sala e seguiu na direção de onde a voz parecia vir. Ele chamou o elevador e, como uma criança levada, apertou todos os andares. A cada parada ele colocava a cabeça para fora do ascensor e verificava se a voz aumentava. Repetiu o gesto até chegar ao primeiro andar, onde funcionava o pronto socorro do hospital. Ele caminhou entre as salas de atendimento até chegar em uma sala de cirurgias. Pela janela da porta ele viu a equipe estarrecida com o estado da vítima. Sua pele apresentava queimaduras por quase todo o corpo e, um taco de bilhar estocado em seu peito.
- Alexandre. Sou eu, Andréia.
O médico continuava olhando pela janela, mas não conseguia ver o rosto da vítima.
- Alexandre! Preciso de sangue.
O pedido específico chamou sua atenção e, sem pensar, o médico invadiu o centro cirúrgico e perguntou se a equipe precisava de ajuda. O plantonista estranhou a presença de Alexandre no pronto socorro. Ele conhecia a sua fama de superinteligente e sabia que ele não trabalhava com atendimento, seu trabalho era feito nos laboratórios e o único contato que tinha com os pacientes era em suas entrevistas para coletar dados para seus estudos.
- Não doutor.
- O que aconteceu? Sabem quem é a paciente?
- Alexandre! Preciso de sangue! Você precisa me ajudar!
O médico se aproximou do leito e percebeu que a paciente estava desacordada.
- Doutor, o senhor está tumultuando minha sala. Por favor, se retire. – disse com firmeza o cirurgião.
- Desculpe! Achei que conhecia a paciente.
- Mais um motivo para o senhor não estar aqui. – retrucou.
Antes de sair da sala ele ouviu o monitor apitar um silvo agudo e constante. O som informava que não havia mais batimentos cardíacos.
- Alexandre! Preciso de sangue! – ouviu mais uma vez.
O centro cirúrgico silenciou e Alexandre ouviu o responsável declarar o óbito. Ele deixou a sala sem olhar para trás e voltou para seu escritório.
- Doutor! – alguém chamou batendo na porta de sua sala.
- Pode entrar.
Uma mulher jovem abriu a porta, mas não entrou.
- Sua refeição chegou.
- Já estou indo.
- É só receber?
- Sim. Já paguei pelo aplicativo.
- Pode deixar que eu mando alguém buscar e te trazer.
- Ok. Obrigado.
A assistente fechou a porta e o silêncio voltou. Minutos depois, ela batia na porta novamente.
- Pode entrar.
- Está aqui o seu pedido, doutor. Está correto?
- Sim. É isso mesmo.
A mulher entrou com seis sacolas de papel que tinham a logomarca de um famoso restaurante e pareciam carregar comida para um batalhão.
- Devo pedir para trazer talheres?
- Não há necessidade.
- O senhor está aguardando alguém?
- Não. Por que?
- Já passou bastante do meu horário. Se precisar eu espero para receber a pessoa que vai jantar contigo. Se não, vou embora.
- Pode ir, não tem necessidade de você estender mais o seu expediente. Obrigado. Boa noite.
- Boa noite, doutor. Até amanhã.
A mulher fechou a porta e foi embora. Ela era uma assistente exclusiva que atendia as demandas de Alexandre. Este foi um mimo do dono do hospital para atrair e manter uma mente brilhante como a dele. A vaidade está presente até nas mentes mais inteligentes.
Ele comeu toda a comida sozinho, não aguardava ninguém, mas não precisava compartilhar essa informação com sua assistente.
- Alexandre! Preciso de sangue! – voz voltou a chamá-lo.
Desta vez ele não demorou em atender o chamado. Antes de descer e procurar pela mulher, foi até o banco de sangue. Um enfermeiro saia pela porta quando ele chegou.
- Pode deixar. Estou entrando.
O rapaz reconheceu o médico e segurou a porta para que não fechasse. A coincidência veio a calhar, pois ele não precisaria deixar vestígios de que passou por lá. Pegou duas bolsas de sangue e escondeu nos bolsos. Depois, caminhou até o elevador e desceu até o segundo subsolo. Àquela hora, o corpo da mulher já deveria estar no necrotério, aguardando a autópsia.
- Será que estou ficando louco? Não. Por que estou fazendo isso? Preciso de respostas. – falava sozinho.
O elevador abriu as portas e o corredor escuro indicava que fazia algum tempo que ninguém passava por ali. Assim que deu o primeiro passo, o sensor de presença disparou o comando e as luzes se acenderam sequencialmente, iluminando o longo corredor. Ele tinha de atravessar todo o pavimento até o local onde os corpos eram guardados. Antes de a última luz brilhar do outro lado ele viu um vulto, na forma de uma mulher. No instante seguinte, assim que a lâmpada acendeu, a sombra entrou no necrotério.
- Você deve estar impressionado. Espíritos não existem! – disse baixinho, buscando coragem em suas palavras.
O médico caminhou pelo longo corredor e encontrou a porta destrancada. Para a sua felicidade, a fechadura eletrônica que controlava o acesso ao local ainda permanecia quebrada. Ele poderia passar pelo local sem deixar vestígios de sua presença. Ele entrou e viu o salão amplo. Quatro macas de metal estavam dispostas lado a lado. Cada uma tinha um tipo de balcão na sua cabeceira. Os instrumentos estavam preparados para que o legista fizesse o seu trabalho. Na parece posterior havia diversas pequenas portas e a uma luz vermelha indicava que a gaveta estava ocupada. Ele cruzou o salão, verificou que a sala do legista, que era um tipo de aquário num dos cantos, estava vazia. Procurou pela identificação que ficava em cada porta. Na quarta gaveta não havia nome do falecido. Apenas a indicação de que era uma mulher. Ele abriu a porta e puxou a prateleira que deslizou barulhenta nos trilhos de metal. Um corpo embalado em um saco preto. Um zíper corria por toda a extensão do embrulho e dividia a sua superfície em duas partes iguais. Ao descobrir o corpo ele não reconheceu o rosto do defunto. De repente, sentiu uma brisa fria soprar e a porta de uma gaveta pouco a frente destravou. Ele guardou o defunto indigente e caminhou para a porta destacada.
- Sim. – ouviu a voz dizer assim enquanto estava parado encarando a porta.
- Sim. Estou aqui.
Ele abriu a porta, puxou a gaveta e descobriu o corpo. Desta vez, o rosto conhecido de Andréia apresentava um semblante de dor. Sua pele tinha fortes queimadura espalhadas por todo o corpo. No peito, o buraco causado pelo taco de bilhar permanecia aberto.
- Sim. Preciso do sangue!
O médico caminhou até bancada de equipamentos e procurou por acessos, mas não encontrou. Riu de sua situação. É lógico que não haveria acessos no necrotério, já que o equipamento é usado para administrar medicações intravenosas e um morto não recebe medicação. Ele encarou o corpo por alguns minutos pensando o que fazer com o sangue. Ele pegou a mangueira que acompanhava a bolsa de sangue e introduziu pela boca de Andréia, como uma sonda, e encaixou no dispositivo de saída da bolsa. O sangue escorregou pela mangueira transparente e parou. Alexandre segurava a pinça que impedia o líquido de correr para dentro do corpo morto. Era a sua última chance antes de cometer aquela loucura. Ele não sabia o que esperar de sua ação. Se nada acontecesse, seria um tolo e teria quebrado o código de ética de sua profissão, além do crime de roubar o sangue. Ele torcia por isso. Entretanto, sabia que não haveria retorno, seja pela sua consciência pesada ou pela consequência de algum resultado no morto.
O médico ergueu a mão e seus polegar fez a pinça escorregar. O sangue passou a gotejar e correu para o estômago da morta. A bolsa estava pela metade e ele já estava convencido de que era um idiota completo. Quando ele tomou a pinça em sua mão novamente para parar o fluxo de sangue, Andréia segurou em seu braço. Ele recuou assustado com o movimento da morta. Pensou ser um espasmo que pode acontecer com os defuntos. Porém, o peito da mulher começou a subir e descer lentamente e o ferimento no peito foi cicatrizando. A primeira bolsa terminara e o corpo parecia continuar sua recuperação. Ele encaixou a segunda bolsa de sangue e aguardou.
Alexandre ponderava se precisaria buscar mais sangue. Quando a segunda bolsa estava perto do fim, Andréia abriu os olhos. Ele retirou a mangueira da boca dela. Porém, ela a tomou da mão do médico e sugou o sangue como se bebesse sua bebida favorita em um canudo. Quando o líquido terminou, ela se sentou na maca. O buraco em seu peito estava fechado e as queimaduras saradas. Pouco tempo depois, não havia nenhuma cicatriz, como se nunca tivesse se machucado. Ela estava linda, igual a noite em que se conheceram. Ela sugou as últimas gotas na mangueira e estendeu a mão. Alexandre se deixou levar e quando seus lábios tocaram os lábios dela, ele sentiu o sabor agradável. Primeiro era adocicado, depois, um sabor intenso de ferro e barro, seguido de um amargor levemente ácido. Por fim, uma nota adocicada dominava o seu paladar e desaparecia lentamente. Ele abriu os olhos, encarou Andréia e a desejou. O ar mórbido desaparecera se seu rosto e, mais uma vez, fizeram um pacto de sangue, porém, desta vez, tinham a morte por testemunha.
- Esta vez foi por pouco! – disse Andréia, depois do fulgor da paixão.
- O que aconteceu? Ainda não compreendo o que se passou.
- Você é inteligente, Alexandre. Não entendeu ou não quer acreditar no que aconteceu?
Ela abriu os lábios com delicadeza e chupou o dedo do médico e, enquanto deslizava sua língua o deixou sentir seus caninos protuberantes. Alexandre recolheu a mão e se afastou.
- Você é... Você é uma... Uma vampira!
- Esse termo é politicamente incorreto! Você me ofende assim. – disse com desdém e deixou escapar um sorriso no canto dos lábios.
- Como?
- Sou uma criatura hematófaga!
- O que?
- Vamos lá doutor. Deixe seu cérebro trabalhar um pouco.
- Você é uma vampira.
- Ha! Ha! Ha! – deixou uma gargalhada sair. – Vou deixar você me chamar assim porque é um amigo íntimo.
- Quer dizer que agora eu sou um vampiro também?
- Sim.
- Eu sou um vampiro!
- Vamos virar a página, Alexandre. Eu quase morri.
- Como?
- Mais um centímetro e aquele homem teria estocado o taco no meu coração.
- Que homem?
- Não. Nunca o via antes. Fui pega desprevenida. Eu achei que seria uma janta fácil. Me deixei levar até o furgão dele. Quando estava nua, ele acendeu um monte de luzes infravermelhas. Você viu o estado em que eu fiquei. Depois ele enfiou a madeira no meu peito.
- Como você chegou aqui?
- Ele desceu do carro e estava falando com alguém no telefone. Com certeza é uma equipe de caçadores. Ele deixou a porta aberta, achando que eu estava morta. O infeliz me deu as costas. Eu quebrei o taco do meu peito e cravei na cabeça dele. O olho saltou para fora da órbita. Depois, eu corri para minha casa, mas desmaiei antes. Por sorte vim parar aqui no seu hospital.
- Por que você fez isso comigo?
- Eu gostei de você! Se não fosse isso, você seria só mais um jantar. Deixei você viver porque achei você especial. Além disso, depois que você me falou que trabalhava aqui, imaginei que seria muito útil.
- O que?
- Você tem acesso a uma mina de ouro.
- O que?
- Sangue, Alexandre! Sangue!
- Você me transformou por isso?
- Não só por isso, já falei. Gostei de você!
Alexandre ficou calado por um tempo. As luzes do corredor acenderam novamente indicando que havia movimentação no corredor. Alguém estava a caminho do necrotério.
- Esconda-se.
Andréia se deitou na maca e Alexandre empurrou a gaveta e fechou a porta. Um enfermeiro entrou e se assustou com a presença do médico.
- Boa noite, doutor! Que susto! Precisa de ajuda? – disse o homem, manobrando a maca com mais um defunto.
- Não. Lembrei de uma coisa e vim até aqui para deixar um recado para o legista.
- Entendo. Uma mensagem no whatsapp não resolveria?
- Verdade. Mas eu não tenho o número dele.
- Só entrar na intranet, doutor. Com o seu tipo de acesso, pode pegar o telefone de qualquer colega.
- Obrigado. Não sabia disso.
O homem abriu uma gaveta e guardou o defunto.
- Já que estou aqui, vou terminar de anotar meu recado. Pode deixar que eu apago a luz.
- Boa noite, doutor.
- Boa noite.
Andréia bateu na porta da gaveta assim que percebeu o silêncio.
- Essa foi por pouco. Vista estas roupas.
- Que roupas são essas? Não vou vestir a roupa de um morto qualquer.
- É um uniforme. Sempre tem por aqui. Como pode imaginar, o trabalho é bem sujo.
Enquanto se vestia, Andréia sentiu um cheiro familiar no ar.
- Aquele assassino veio parar aqui?
- Teoricamente, você é a assassina. Ele não te matou.
A vampira lançou um olhar nervoso para o médico. Abriu a porta e puxou a gaveta com o defunto. Examinou o corpo e se certificou que era o caçador que a atacara.
- Vamos ver o que descobrimos. – disse e abriu o saco plástico que continha os pertences do morto.
- Nada. Só roupas. Nenhum documento. Nem o celular que ele usava está aqui.
- Deve ter chegado aqui sem nada.
- Como sabe?
- Quando ocorre um óbito, os funcionários devem colocar todos os pertences neste saco e preencher um inventário.
- Alguém não pode ter roubado?
- Pode, mas bem difícil. Além disso, quando ocorre o óbito e não há identificação, dá um trabalho imenso. Um celular pode ser útil na identificação do corpo. É tanto trabalho que um eventual ladrão desistiria antes de cometer o crime.
- Você sabe dizer a quanto tempo ele está morto?
- Precisaria de um tempo até saber com certeza. Por que?
- O sangue carrega suas memórias. Mas depois que a pessoa morre, a informação desaparece em algumas horas.
- Como assim? Onde esta informação fica armazenada?
- Humanos! Se acham tão avançado, mas são cegos. Não enxergam um elefante numa sala.
Alexandre procurou por uma seringa e extraiu um pouco do sangue do defunto.
- Pelo estado do sangue, não faz muito tempo.
- Tem certeza?
- Só com exames. Qual o problema?
- Sangue de morto é um veneno para nós. Eu não estou cem porcento. A dose poderia ser fatal em mim.
- Eu experimento.
- Não. Você ainda não sabe acessar a memória do sangue. Melhor irmos embora. A pessoa com quem ele falava ao telefone deve estar a sua procura.
- E a sua também.
- Pegue a minha chave e vá para o apartamento. Encontro com você lá.
- Ok. Só mais um pedido.
- Eu sei. Você precisa de sangue. Vou buscar mais antes de ir.
- Eu disse que você era especial.
Andréia passou despercebida pelo hospital e foi para o apartamento de Alexandre. O médico fez nova visita ao banco de sangue e roubou mais quatro bolsas. Quando chegou em casa, Andréia esperava por ele com outras roupas.
- Você tem uma adega interessante aqui, doutor.
- Não me chame assim.
- Desculpe. Vou preparar um drink para nós dois. Hoje foi um dia bem cheio, nós realmente precisamos de uma bebida.
Andréia pegou dois copos e os encheu de gelo. Pegou o dosador e encheu com a primeira bebida. Trinta mililitros de vermute, trinta mililitros de Campari e trinta mililitros de gin.
- Negroni? – perguntou o médico.
- Uma adaptação. Onde está o presente que me prometeu?
Ele apontou uma maleta que deixara no sofá. Ela abriu e pegou as quatro bolsas de sangue. Deixou uma no bar e guardou o restante na geladeira. Mediu trinta mililitros de sangue e o misturou com a bebida. Cortou duas fatias finas de laranja e, depois de aromatizar a borda do copo, mergulhou no drink.
- Bloody Negroni! Minha receita especial.
Os dois apreciaram a bebida em silêncio. O médico sentiu uma explosão de sabores com seus sentidos mais aguçados. A uva do vinho que compunha o vermute e suas especiarias, os mais de sessenta ingredientes do Campari e o zimbro do gin. O sangue adicionou os aromas perfumados de suas proteínas que despertam umami no paladar dos vampiros, o ferro trouxe uma pequena adstringência e o vermelho vivo. Além do sabor, o sangue trouxe uma viscosidade que deu uma sensação aveludada na bebida. A mente do neófito vampiro experimentou emoções que ele nunca vivera. Porém, ele se concentrava em sua situação atual.
- Uma vampira! Criatura hematófaga uma ova! É um demônio no corpo de uma mulher. Que mulher linda! Foco, Alexandre! Você é um demônio também. Precisa saber quais são os perigos que te aguardam. – pensava em silêncio.
- Como pude ser tão descuidada!? Por pouco eu não morri! Quem era aquele caçador? Não fosse pelo meu novo brinquedinho, estaria em maus lençóis. Que brinquedinho mais gostosinho. Faz séculos que eu não me sinto assim. Foco, Andréia! Talvez seja por isso que você baixou a guarda. – se indagava a vampira.
- Mais um drink?
- Pode ser.
- Desta vez será um pouco mais vermelho. Precisamos acabar com esta bolsa ou o sangue estragará.
A vampira colocou os copos na pia e buscou por outros no armário. Pegou os maiores que havia disponível. Cilíndricos, altos e grossos. Se tivessem alça, seriam pequenas jarras. Noventa mililitros de vermute, noventa mililitros de Campari, noventa mililitros de gin e duzentos e vinte mililitros de sangue.
- Três doses em uma. Amei estes copos.
- Três?
- Relaxa. Esse está mais bloody do que o outro. Eu preciso me recuperar e seu eu não te alimentar direito, é capaz de você me comer daqui a pouco. Me comer literalmente.
- O que você sabe sobre estes caçadores?
- Bem. Os caçadores existem desde que o primeiro vampiro surgiu.
- E quando foi isso?
- Ninguém sabe.
- O Vlad III foi o primeiro?
- Não. Ele foi um idiota. É apenas o culpado por ganharmos notoriedade. Se não fosse por ele, o mundo praticamente não saberia que existimos.
- Quantos anos você tem?
- Não se faz essa pergunta para uma dama.
- Você não é uma dama.
- Você é engraçado. Eu gosto de você, mas não abuse. Se me ofender novamente eu te mato.
- Desculpe. Não tive a intenção.
- Eu sei. Se eu pensasse que queria me ofender, não estávamos tendo esta conversa.
- Bem, reformulando a minha pergunta. Você é uma vampira a quanto tempo? Estes caçadores estão te seguindo desde quando?
- Quando o Vlad ficou famosinho eu já era vampira a muito tempo. Isso basta por enquanto. Agora, estes caçadores estavam fora do meu radar. Há décadas eu não os encontrava.
- Há mais como nós?
- É lógico que sim, meu querido.
- Quero dizer. Há mais vampiros aqui em São Paulo e que sabiam que você está aqui? Precisamos descobrir o quanto eles sabem.
- Calma, Sherlock. Não é tão simples assim.
- Por que?
- Ninguém sabe ao certo quantos de nossa espécie ainda existem. Não temos um líder. As antigas famílias tinham um pacto de não transformar novos membros. Desta forma, estimávamos nossa população. Porém, depois do Vlad, algumas famílias foram caçadas até a extinção. Outras abandonaram o pacto e transformaram muitos para se proteger e sobreviver. Parte dos líderes antigos foi morta e os mais novos sumiram.
- Entendi.
- Além disso, ninguém quebra o silêncio. Quanto menos pessoas souberem da nossa existência, melhor.
- O que faremos?
- As notícias correm rápido no mundo dos vampiros também. Vamos esperar dois dias, depois vamos tomar um drink.
- Onde?
- Onde eu te conheci. Aquela casa é antiga. Quando os seus fundadores chegaram ao Brasil, acolheram sem saber um vampiro. Ele acabou criando uma relação boa com a casa. E há uma tradição que mesmo os novos não abandonaram. A vontade de sobreviver. Sempre que há um ataque, dois dias depois as famílias enviam emissários para os pontos de encontro.
- O lounge é este ponto de encontro?
- Um deles.
- Entendo. E até lá, o que faremos?
- Nada. Eu preciso me recuperar e você ainda precisa aprender a controlar a sua sede.
- O que você quer dizer com isso?
- Você está com uma fome que não passa nunca, certo? Não importa o quanto coma.
- Correto.
- O aroma que você sente no ar é o sangue. Chegará um momento que você não será forte o suficiente e precisará matar uma pessoa.
- Por que matar?
- Se você não matar, a vítima se transforma também.
- Isso eu entendi. Por que tenho de matar?
- Ah! Na verdade, você não precisa matar. O que você precisa é ingerir a quantidade de sangue de um indivíduo adulto. Ou seja, se você deixar a pessoa sem sangue, você é médico, sabe o que acontece.
- Então só preciso do sangue, não tem nada a ver com a morte.
- Mais ou menos. Há outras implicações nas dimensões que os humanos não veem, mas isso não é importante você aprender agora. A sua sede vai passar por alguns dias.
- Acho que consigo essa quantidade de sangue.
- Não se esqueça de mim, bebê. Quase morri, preciso da mesma quantidade que você para me recuperar por completo.
- Certo. Vou dar um jeito nisso. Agora preciso de outros detalhes. A luz realmente faz mal? Vou virar um morto vivo? O lance da estaca é verdade?
- Nossa pele é hipersensível à luz ultravioleta, você viu o resultado no meu corpo. Porém, ao contrário do que se pensa, nós estamos vivos. Nosso coração bate a uma frequência muitíssimo baixa, por isso se criou a lenda de que estamos mortos.
- Então, você não estava morta no necrotério?
- Não. Estava bem debilitada e acabaria morrendo se não ingerisse sangue. Você desenvolverá essa habilidade de se comunicar.
- Com qualquer pessoa?
- Não. Toda a sua fisiologia muda, inclusive a do seu cérebro. Ele decodifica frequências que um humano não consegue.
- Incrível.
Alexandre conseguiu justificar a utilização do sangue com sua pesquisa. Desta forma, Andréia se recuperou completamente e o jovem vampiro aplacou a sua sede.
Os dois dias se passaram e eles voltaram ao lounge. Assim que entraram, ouviram o chamado de um vampiro indicando que eles estavam em uma sala reservada, apreciando um bom tabaco e um drink. A sala era um espaço intimista para clientes especiais. Seguia a mesma decoração da casa com piso e revestimentos em madeira. Oito poltronas revestidas em couro, separadas em duas fileiras, uma de frente para a outra, com pequenas mesas entre elas. Cada mesa tinha dois cinzeiros e dois dichavadores. Andréia e Alexandre foram os últimos a chegarem. A primeira reunião das famílias de vampiros começava depois de décadas em silêncio. O destino de todos estariam ligados a partir daquele momento.
(FIM DA PARTE 01)
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