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CATIVOS NO LITORAL

Conto: Cativos no litoral
Autor: Soaréstes Santos

Juliana corria desesperada pela floresta. Não sabia onde estava, apenas, tentava fugir. Esbarrou numa árvore e caiu. Percebeu que sua calça jeans estava rasgada no joelho esquerdo, buscou na memória quantos dias já haviam passado. O coração desacelerou rapidamente quando notou o silêncio. Seus perseguidores, ou seja lá o que a estivessem seguindo, a perderam de vista. Calçava apenas um tênis, o outro se perdeu no matagal, talvez preso em raízes ou num lamaçal. Percorreu o corpo com as mãos para identificar ferimentos e se deu conta que vestia o moletom de Bruno. Não sabia onde ele estava. Em meio aos pensamentos e vencida pelo cansaço, adormeceu.

Sonhou que caminhava por uma trilha bem definida, um caminho pelo qual ninguém se perderia, mesmo não sabendo nada sobre caminhar em mata fechada. Uma voz ecoava distante numa melodia que entorpecia a mente entrando pelos ouvidos. A música causava, primeiramente, medo. Mas depois o medo desvaneceu e uma curiosidade passou a dominá-la. Ela tinha certeza de que algo ruim estava por traz da tentadora voz, mas a curiosidade que quase explodia o seu coração a fazia continuar. Deparou com uma bifurcação e titubeou. Ficou parada ali algum tempo, não sabia distinguir de qual direção a voz vinha. Enquanto arrazoava se um cara ou coroa seria a melhor aposta, viu uma procissão de luzes. Elas cintilavam como pequeninas estrelas. Amarelas, verdes e vermelhas iluminavam o caminho à sua esquerda. Entendeu isso como um sinal. Seguiu os vagalumes.

Caminhou por mais um tempo. Uma pequena neblina começou a se formar. À medida que se aprofundava na mata a nuvem ficava mais espessa, ao ponto de poder sentir as gotas de água condensando em suas mãos. Ao mesmo tempo, a voz aumentava. Sabia que estava perto. Aquela sensação do medo regressou e, por um instante, pensou em fugir para o mais longe possível, mas já estava seduzida pela curiosidade. De repente, a neblina dissipou e a trilha terminou. Olhou para trás e viu o caminho de volta aberto a recebê-la novamente. Voltou-se para a floresta de novo e avistou o que parecia ser uma cabana logo a frente, pouco mais de cinquenta metros. Ela se aproximou com cuidado, como um animal que não quer espantar sua presa. A porta da cabana estava aberta, mostrando o breu lá dentro. Duas bolas de fogo surgiram na penumbra da cabana, ela percebeu que olhos de fogo a observavam. Acordou.

Não muito distante do local onde Juliana acordava, Bruno a procurava em silêncio. Durante a fuga do cativeiro eles se perderam. Ambos haviam escapado, mas estavam separados agora. Ele sabia que não poderia gritar, os sequestradores certamente já haviam dado falta deles e deveriam estar a sua procura. Fazia cinco dias que estavam presos. Era feriado prolongado, então, a família ainda não sentira a ausência do jovem casal. Bruno usava apenas uma bermuda. Seu moletom estava com Juliana e as havaianas se perderam durante a fuga.

O casal saiu da capital paulista para Juqueí, no litoral norte do estado, a fim de aproveitar os dias de descanso. Alugaram uma casa num lugar remoto, no meio da mata atlântica. As fotos que o aplicativo mostrava eram deslumbrantes. Apesar de simples, o local era confortável e aconchegante. Na sala, um sofá, duas poltronas e uma estante cheia de livros. No quarto, uma cama bem macia, com lençóis limpos e travesseiros fofos. Uma cozinha com um fogão, uma geladeira e uma mesa com duas cadeiras. A varanda na frente da casa tinha uma cadeira de balanço do lado direito e uma rede do lado esquerdo. O terreno era pequeno, um quintal curto se estendia na frente e por detrás e um muro baixo de tijolos delimitava o espaço.

A casa era muito bem escondida, para chegarem até lá, eles saíram da SP-101 dois quilômetros após a praia da Barra do Una e pegaram uma trilha no meio da mata. O terreno acidentado não ajudava na velocidade. Depois de quarenta minutos de floresta de ambos os lados, uma pequena clareira se abriu e a casa podia ser vista, era igual as fotos do anúncio. Eles queriam se desconectar do mundo. Não havia sinal de celular e nem de internet. A energia elétrica alimentava apenas a geladeira através de alguns painéis solares. O restante da casa era iluminado por lampiões a gás.

Eles chegaram cedo, por volta das sete horas da manhã. Arrumaram as coisas no quarto. Foram até a cozinha e fizeram uma lista de mantimentos que faltavam. O objetivo era ir até o mercado perto da praia e voltar para a casa. Aquele seria o último contato com a civilização em cinco dias. A manhã estava bonita. O sol brilhava no céu sem nuvens. Juliana quis ficar na praia um pouco, mas quando viu a multidão de guarda-sóis e cadeiras que tomavam a areia, desistiu. Voltaram para a casa, almoçaram e dormiram durante a tarde.

Bruno acordou quando o sol já se escondia atrás das montanhas da serra e projetava sua sombra sobre a mata. O local que era lindo a luz do dia, perdia sua beleza à medida que a noite chegava. Mesmo em uma noite clara de lua cheia como aquela, a casa tinha um ar aterrorizante. Os ruídos que vinham da floresta eram estranhos. A sinfonia de cantos de diferentes animais causava desconforto no casal, mas era isso que eles queriam, ficar isolados. Depois do jantar, eles aproveitaram a varanda sob as luzes dos lampiões. Já era tarde quando decidiram entrar para dormir. Enquanto preparavam para se deitarem, ouviram um ruído de motor de carro. Bruno olhou pela janela e viu uma caminhonete parada na trilha, junto a entrada na clareira na qual a casa ficava. Foram apenas alguns segundos para o veículo seguir pela trilha. Bruno aguardou e acompanhou o brilho dos faróis até eles serem engolidos na escuridão da floresta. Juliana olhava receosa para Bruno, mas ele a tranquilizou dizendo que como o local era bem isolado, quem conhecesse a região estranharia o movimento na casa, devia ser difícil ter gente por ali.

Já era madrugada quando Bruno acordou. Juliana estava sentada na cama e olhava fixamente para a porta do quarto. Ele seguiu os olhos da companheira e viu a figura encapuzada. Era um homem grande, quase dois metros talvez, com uma arma na mão. Assim que Bruno encarou o homem, ele levou a mão a boca, pressionando o indicador nos lábios, ordenando o silêncio. Pediu para que eles se levantassem e se vestissem. O casal pegou a primeira roupa que estava na mala. Enquanto se vestiam, Bruno reparou na janela e viu luzes, concentrou um pouco mais e ouviu um motor. Pensou na caminhonete que havia passado naquele fim de tarde e, infelizmente, ele estava certo. Ao saírem da casa, dois homens esperavam ao lado do veículo, ambos armados também. Um deles pediu a chave do carro de Bruno, o outro, informou sobre o sequestro. Demandou que se acalmassem e disse que tudo terminaria bem se fizessem o que ele pediria. O homem acenou para entrarem na caminhonete. Mas, antes, cobriram suas cabeças.

Os dias que seguiram foram angustiantes e terríveis. Era um cômodo escuro e abafado. A umidade da mata atlântica fazia parecer uma sauna fétida. Ambos estavam algemados, cada um em uma parede, com uma das mãos presa a um cano que se estendia de ponta a ponta. Dois baldes para fazerem as necessidades foram disponibilizados. O casal preferiu deixá-los nas extremidades opostas e o único conforto que encontraram era na presença do outro, na esquina do quarto onde as paredes se juntavam. Foram alimentados uma vez por dia com um sanduiche com queijo. Um galão de água ficava à disposição, e era reposto apenas uma vez por dia, assim como os baldes para a higiene.

Bruno não tinha noção de onde estavam, mas, certamente, muito mais embrenhado na mata. Imaginava que haviam ficado na caminhonete quase duas horas antes de serem presos no cômodo. Apesar de coberto com o capuz, conseguiu ver parte do casebre em que estavam. Parecia ter apenas dois quartos e um banheiro. No local em que eles estavam, havia duas janelas bloqueadas com compensados de madeira e uma porta, que dava para o outro cômodo, onde, eventualmente, um dos sequestradores ficavam. De vez em quando, ouvia o barulho de uma descarga, por isso imaginou a existência de um banheiro. A maior parte do tempo ficavam sozinhos. Logo no primeiro dia, percebeu que os sequestradores faziam algo mais. Ouviam diversos animais, a maioria pássaros, mas conseguiram distinguir o som de macacos. Eram tantas as vozes e tons que eles não sabiam identificar a quais animais pertenciam.

Na noite anterior à fuga, eles ouviram um esturro, parecia um felino grande. Uma jaguatirica ou até mesmo uma onça foi capturada. No fim do dia, quando a caminhonete chegou, algo deu errado. Houve confusão entre os sequestradores, uma gritaria, o bicho tinha escapado. A agitação durou pouco tempo, sendo emudecida após o som de três tiros. Nos instantes que sucederam, houve silêncio absoluto, toda a mata estava calada, velavam o felino morto no chão. Todos os sequestradores partiram e eles ficaram sozinhos no cativeiro. Como nos outros dias, alguém voltaria apenas ao amanhecer. Porém, uma atmosfera de ódio foi lentamente tomando conta do local.

À medida que a madrugada avançava, uma neblina se formou e ficava cada vez mais densa. Sussurros horripilantes vinham da mata, eram vozes carregadas de maldições, imprecações e violência. A bruma invadiu o quarto onde estavam. Juliana se aninhou sob o braço de Bruno, o terror tomou conta da sua mente, ela chorava sem parar. As vozes ficavam cada vez mais altas e intensas. Sentiam as paredes vibrarem como o couro de um tambor. O nevoeiro no quarto se agitava formando um turbilhão, uma nuvem de tempestade. A esta altura, Bruno já estava dominado pelo medo também. Segurava Juliana com toda a sua força para protegê-la, mesmo sabendo que seus braços eram inúteis contra aquilo que acontecia. As vozes clamavam tão alto que desorientava a mente dos dois. Estavam aterrorizados de tal forma que a consciência os deixava, suas mentes estavam prestes a enlouquecer. Mas, de repente, fez-se silêncio. A tormenta se acalmou dentro do quarto e dissipou. Porém, aquela atmosfera horripilante continuava a oprimir seus corações. Eles ouviram passos se aproximando. Um silvo estridente rompeu a quietude. As paredes tremiam, Bruno temeu que o casebre desabasse. Forçou a barra que o prendia e conseguiu livrar-se. O som aumentava, assim como o terror deles. Era tão intenso que eles taparam os ouvidos com as mãos tamanho o pavor e dor que sentiam.

A paz voltou repentinamente. Enquanto Juliana ainda se recuperava, Bruno percebeu que a barra que a prendia também cedera, aplicou um pouco de força e libertou Juliana. Pelas frestas da janela podiam ver um clarão de fogo do lado de fora, uma labareda dançava no quintal. Um esturrou viajou pelo ar. Pensaram outro felino enlutado pelo amigo morto. Bruno foi para a porta do quarto e a encontrou destrancada e o cômodo ao lado vazio como se esperava. As duas janelas davam para a frente da casa e estavam entreabertas. A neblina ainda estava densa lá fora. O céu clareava e a escuridão cedia espaço para a luz que vinha do Leste. Ele percebeu que precisavam sair dali rápido, os sequestradores já estariam a caminho. No canto do cômodo havia uma pequena mesa e uma poltrona. Sobre a mesa, pacotes de bolacha, maços de cigarro, um rolo de fumo e um galão de água. Juliana estava com frio e parecia em choque. Bruno falava com ela, mas não havia reação. Ele pegou seu moletom e a vestiu. Tomou-a em seus braços e a segurou forte. Balbuciou palavras de carinho em seu ouvido. Então, o calor de seu corpo e de sua voz aqueceram o coração de Juliana que voltava a si. Bruno falou novamente que deveriam partir e, desta vez ela compreendeu e assentiu com a cabeça.

Ao saírem do casebre a bruma estava mais delgada, era possível ver a casa e a floresta ao redor. Bruno acompanhou as marcas dos pneus da caminhonete para ver por onde seguiam. Só havia uma trilha e ela terminava no casebre onde estavam. Concluiu que deveria seguir aquele caminho, mas que, certamente, cruzaria com os sequestradores. Decidiu, então, se embrenhar mata adentro, longe o suficiente da trilha para não serem vistos, mas de forma que pudessem segui-la pela margem. Enquanto ainda pensava como entrar na mata, ouviu uma respiração pesada vindo da lateral da casa. Já estavam afastados um pouco, a neblina, apesar de rala, não os permitia ver com clareza. A labareda acendeu e dançou novamente. Seu instinto primevo de sobrevivência o levou a pegar Juliana e correr. Corriam como o diabo foge da cruz. Bruno olhou para traz para ver o que os perseguia, porém, a única coisa que percebeu foi a silhueta de um homem pequeno. Chamas ardiam sobre a cabeça e olhos da figura. Ele ficou paralisado de medo por um instante. Quando se deu conta, perdera Juliana de vista. Correu na direção na qual ela fugia e orou à Deus para que a encontrasse.

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Os sequestradores estavam próximos ao casebre quando o casal fugiu. Não fosse a estratégia de Bruno de irem pela mata, teriam se encontrado em pouco depois da escapada. Ao chegarem no local do cativeiro logo deduziram algo estar errado porque a porta estava aberta. Os três sacaram as armas, investigaram o local e confirmaram que estava vazio. Eles perderam seus reféns, embora nunca tivessem a intenção de devolvê-los aos parentes. O resgate já fora combinado com os pais do casal. Eles juntaram todas as economias para atender ao pedido. O valor não chegava nem perto do três milhões de reais solicitado. A soma de todos os recursos dos pais de Juliana e dos pais de Bruno chegavam perto de um milhão apenas. O casal não era a primeira vítima daqueles bandidos. Há tempos eles praticavam seus crimes sem serem descobertos. Agiam por todo o litoral paulista e o desfecho sempre o mesmo, um resgate por vítimas que nunca apareceram. Eles precisavam das vítimas para a prova de vida antes do resgate ser pago. Decidiram caçar os fugitivos.

Uma neblina se erguia suspensa no ar. Uma maldade perene transbordava do meio dela. Os assassinos sentiram medo, um sussurro horroroso vinha da floresta ao redor deles. Tinham a impressão de estarem rodeados. Embora aterrorizados, os três decidiram a estratégia de caça, andariam através das duas margens da trilha. Era provável que o casal teria fugido por aquela direção ao invés de adentrarem ainda mais na mata. Antes de iniciarem a perseguição, um deles tomou coragem e disse que estava com um mal pressentimento, contou que a onça não estava mais ao lado da casa, onde a deixaram. Teve a impressão de que a viu sentada na mata a pouca distância do casebre. Os outros dois, apesar de igualmente amedrontados, desdenharam do comparsa. Um foi por um lado da trilha, outro foi com a caminhonete pela estrada, afinal precisariam transportar os cativos de volta e o último pela margem oposta ao primeiro. Quem localizasse os fugitivos assobiaria o sinal combinado e os demais iriam ao seu encontro.

Logo após iniciarem a jornada a neblina se tornou mais densa e fria, estranhamente fria. Parecia carregar agulhas congeladas que os picavam na pele sem roupa. O que estava na margem oposta ao que o casal fugira avistou dois vultos a frente. Não deu o sinal combinado porque não tinha certeza, foi apenas num relance que os viu. Porém, seguiu em sua direção, se afastando cada vez mais da trilha. Alguns minutos de caminhada sem ver mais nada o desanimou, até que ouviu uma voz de mulher pedindo ajuda. O som vinha de longe, mais no interior da floresta. Ele apressou o passo pois ouvira a voz distante, imaginou que subestimara o casal, eles andavam muito rápido mesmo naquela mata fechada. Concentrou toda a sua atenção na voz que chamava por socorro e se esqueceu do restante. Como que enfeitiçado pelo som, ele entrava cada vez mais fundo na mata. Sua mente o conscientizava de que precisava chamar pelos comparsas, mas seu corpo não obedecia e seguia inebriado a voz que parecia cada vez mais próxima. Avistou um vulto pouco a frente dele, estava parado, coberto com uma capa. Quando o bandido deu por si, viu que já era noite. Ele apanhou sua lanterna e iluminou a figura que continuava estática. O sentimento de pavor foi crescendo em seu coração. Seu corpo suava e suas mãos trêmulas mal conseguiam manter a mira da arma no alvo. Não sabia o que fazer, pensou em demandar que a figura se revelasse, mas temia pelo que veria. Lentamente, o tecido que cobria o vulto começou a escorregar para trás, como se alguém o puxasse cuidadosamente para revelar uma surpresa. A cada centímetro revelado, o coração do homem batia mais rápido, ao ponto de ele pensar que enfartaria. Primeiro, notou uma pele escura nas pernas da criatura que parecia não ter pés. Com o dorso revelado, o homem percebeu a tonalidade esverdeada da criatura. Ela vestia apenas uma espécie de saia que cobria o que ele imaginava ser a genitália do ser, se comparada a um humano. O manto despencou de vez e a revelou por completo. Neste momento, por um impulso, o homem disparou a arma, atingindo um projétil no peito da criatura, que se manteve quieta, imóvel, de olhos e boca fechada numa rigidez cadavérica. Um líquido viscoso emergiu do buraco causado pelo tiro. A criatura moveu-se levando as mãos até o ferimento. Gemidos de dor saíam se sua boca. O homem aproveitou o momento de fraqueza e disparou diversas vezes, um tiro após o outro até acabarem as balas. A criatura encurvou-se de dor, apoiou numa árvore próxima e começou a sussurrar um feitiço. As palavras eram ininteligíveis para o homem, que recarregava a arma. O sussurro virou uma fala. A fala se tornou em grito. O grito virou um assobio estridente e silenciou. A criatura sorriu, mostrando seus dentes serrilhados e verdes. Abriu os olhos, vermelhos como o sangue, e encarou o sequestrador. Hipnotizado pela criatura, o homem era quem estava imóvel agora. Embora empregasse toda a sua vontade e força, os músculos não se moviam. Os olhos vermelhos da criatura cintilavam, e a cada instante de maneira mais intensa, até que viraram chamas. A labareda subiu pela cabeça e lambia sua cabeleira ruiva. O homem escrutinou a criatura de cima a baixo, notou que os pés estavam virados para trás. Ele não acreditava no que via, era impossível, era uma lenda. Mas se deu conta que estava frente a frente com o Curupira.

O ser sobrenatural se moveu, caminhou lentamente em direção ao homem. Ódio e raiva destilavam de sua boca. Ele podia sentir o seu medo e se alimentava dele. Quando se aproximou, cochichou algumas palavras que o assassino não compreendeu. Retirou a arma de sua mão e chamou por um nome. Imediatamente a onça que foi morta no dia anterior apareceu ao seu lado. O homem a reconheceu não só pela marca característica que tinha na orelha, que era branca, mas pelas marcas dos tiros que ele disparara. O Curupira ressuscitou a onça e agora o sangue dela clamava por vingança e assim o foi. A criatura colocou a mão sobre a cabeça do homem e recitou uma praga. Em seguida, o homem gritava de dor, feridas se abriram em sua pele, nos mesmos lugares onde ele atirou no animal. Instantes depois, as cicatrizes da onça desapareceram, das chagas do homem brotaram vermes que o devoravam enquanto ainda estava vivo.

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O sequestrador deu a partida no motor e esperou. Acompanhou os comparsas com os olhos até vê-los sumirem rapidamente na mata por conta da neblina. O vento congelante que a névoa trouxe o forçou a fechar as janelas do veículo. Foi então que ele viu uma sombra passando vagarosamente pela lateral da caminhonete. Ela desfilava com graça e suavidade, como alguém que caminha com a intenção de chamar a atenção para si. Um calafrio subiu pelo corpo do motorista com uma agressividade que o fez saltar no banco. Seus ossos pareciam pedras de gelo, seu estômago revirou. O mal súbito que o acometera veio acompanhado de uma náusea cambaleante. Pensou em descer para despejar seu desjejum na trilha, mas temeu pela sombra. Segurando o líquido dentro da boca, com as bochechas cheias, acelerou o carro. A neblina ficou densa e não o permitia ver nada a frente do capô. Uma segunda onda de náusea chegava, ele não conseguiria segurar agora. Saltou do veículo e lançou-se ao chão, com os joelhos e mãos apoiadas no barro, arrotava todo o seu pavor. O farfalhar das folhas mortas e secas no chão da floresta anunciava a presença de alguém. Ele assobiou o sinal combinado, mas a resposta não foi a que esperava. Na verdade, ele não sabia o que esperar. Era pouco provável que fosse um dos companheiros, pois sabia que a distância que percorrera era grande, quando acelerou para fugir.

Um silvo estridente soprou da floresta. No início o som veio devagarinho, baixinho, quase inaudível. À medida que os passos se aproximavam, o ruído crescia em volume e em intensidade. Horror, angústia e sofrimento vinham com ele. Seus ossos pareciam estilhaçar dentro do corpo, ressoando o terrível tom. Sentiu uma dor aguda na cabeça. Algo viscoso e morno saia dos seus ouvidos. Ele levou as mãos às têmporas e descobriu seu sangue. Confuso com tudo o que acontecia, ele levantou e se pôs a andar para frente e para trás, dizendo palavras sem sentido. Limpava as mãos rubras nas roupas, se maquiando com aquela tinta odiável. Ao tropeçar numa pedra à beira do caminho, despencou, rosto no chão, e despertou do transe que se encontrava. Notou que o som havia calado. Ele se recompôs e entrou no veículo. A sombra surgiu na floresta, próximo a trilha. Tentou ligar o carro, mas o motor insistia em não funcionar. O vulto permanecia estático. Cada volta da chave na ignição demorava uma eternidade. A melodia metálica do motor teimoso rasgava a sua alma. Olhou novamente para a margem da floresta, a sombra desaparecera. Respirou 5 vezes lentamente e se acalmou. De repente, o veículo chacoalhou, algo bateu em sua lateral. Ele olha assustado e não vê coisa alguma. Mais um instante e a pancada foi na outra lateral. Pouco depois, o barulho da lata se contorcendo rodeava o carro num frenesi. A impressão que tinha era de que caminhonete tombaria. Desesperado ele dá a partida no motor novamente e, para sua salvação, as engrenagens funcionam. Ele engata a marcha e sai em disparada.

Dirigiu por vários minutos. Seu objetivo agora não era mais encontrar o casal, mas sair da floresta. A neblina não dava trégua e o acompanhava, limitando sua visão. Então, num piscar de olhos, a trilha se abre à sua frente. Assustado, ele mete os pés no freio, o carro para de supetão e o motor desliga. Incrédulo, ele olha para a lateral da trilha e vê o casebre que servia de cárcere. Estava de volta ao ponto de partida. A névoa começava a se formar novamente. Tomado pelo medo, ele tenta ligar o carro e sai a toda velocidade. A nuvem ficava cada vez mais densa, a ponto de não enxergar nada e, de repente, a trilha aparecia limpa outra vez. Para seu desespero ele vê, novamente, o carro estacionando ao lado do casebre. Ele manobra o carro e tenta o sentido contrário da trilha. Neblina, cegueira branca, clareira e casebre. Ficou imóvel dentro do veículo durante alguns minutos. Quando a névoa começou a se formar novamente, ele empunhou a arma e desceu do carro. Estava decidido a seguir a pé desta vez. E, de novo, a bruma se tornou tão densa que nada enxergava. Só que agora, a clareira não aparecia mais. Ele estava envolto num labirinto sem saída. Teve a impressão de caminhar por dias sem descanso. Quando o corpo estava no limite da exaustão, ele ouviu um silvo vindo da floresta. Seu coração tremeu, pode ser que até tenha parado por alguns instantes. A melodia odiável o rodeava. Ele sentiu uma pancada na perna. Seu joelho estava torcido. Outra pancada, desta vez, no braço e o sangue começa a escorrer pela mão. A cada contato, seu corpo era dilacerado. Rendido, jogado ao chão, ele chama pela morte, mas ela não o responde. Não antes de seus olhos contemplarem aquela criatura se aproximando. Um corpo escuro, pés virados para trás, olhos e cabelos vermelhos. Ele a viu sentada ao seu lado, tomando sua mão e levando até a boca com dentes serrilhados. O medo deixou seu coração, não sentia mais nada. Enquanto seu sangue era sugado e sua vida se esvaía, uma lembrança lhe saltou a memória. Não sabia como, mas tinha a certeza de conhecer aquela criatura. Então, a morte o respondeu.

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Assim que entrou na mata, o sequestrador encontrou vestígios da fuga do casal, seria fácil seguir os seus rastros. Apertou o passo no intuito de encontrá-los o quanto antes. As pistas eram tão evidentes ele parecia como andar num campo aberto. Além do estrago nas plantas, arbustos, flores e toda vegetação deixados durante fuga desesperada, o caçador avistou um tênis e um par de chinelos à medida que caminhava.

Poucos quilômetros frente, Bruno encontrava Juliana escondida no meio de um bambuzal. Eles se abraçaram e se consolaram. Aquele acalento seria como o último suspiro antes de um mergulho profundo, a calmaria que antecede a tempestade. Enquanto Bruno tentava se localizar para decidir qual direção seguir, uma névoa começou a se formar na mata. Aquela nuvem trazia consigo mal agouros e imprecações, talvez a própria morte. Juliana olhou para trás e viu uma labareda de fogo o meio da bruma que já estava mais forte. Sem saber a razão, lembrou do sonho ou alucinação que tivera, segurou a mão do marido e correu. O sequestrador, no encalço deles, avistou a neblina se formar a sua frente. Pensou ter visto uma tocha correr na cerração, mas achou improvável que suas presas fizessem algo do tipo. De toda forma, se pôs a correr, sabia que estava muito perto. Ouviu sussurros que vinham de dentro da nuvem, tinha certeza de serem suas vítimas. Com a confiança de um caçador armado diante de um animal indefeso, seguiu gritando, na tentativa de impor mais medo as vítimas. Bruno e Juliana corriam o mais rápido que suas pernas conseguiam, mas em poucos instantes foram engolidos pela nuvem horrenda. Sussurros os cercavam, eles pararam, um de costas para o outro, na esperança de não serem pegos desprevenidos. Os sussurros agora já eram gritos estridentes e enlouquecedores. Tão fortes que sentiam a pressão reverberar em seus corpos. De repente, silêncio. Ouviram passos em sua direção. Um vulto caminhava no meio da neblina. A cada passo tomava formas mais distintas. Empunhando a arma, o sequestrador os havia encontrado.

Fracos diante da arma, seguiram as instruções do homem. Caminhavam em direção oposta a que fugiam. Ele os levava de volta ao casebre que servia de cativeiro. A bruma, porém, causava mais medo do que o sequestrador. Chegando ao local, se depararam com uma cena que se lembrariam pelo resto de suas vidas, um corpo ressequido, mumificado, ao lado da caminhonete. A cerração os seguia. O homem retirou do veículo alguns pedaços de corda e deu a ordem para Bruno amarrá-los numa árvore próxima. Quando ficou convencido que o casal estava suficientemente preso, baixou a arma. Caminhou até eles e conferiu o nó. Reforçou a amarração e foi investigar o corpo. Pelos trajes que vestia, soube que era um de seus comparsas. Analisou a cena com cuidado antes de se aproximar e notou pegadas e por todos os lados. Identificou um rastro deixado e seguiu os passos em direção da casa. A nuvem ficou densa, agitada, rodopiando como uma tormenta. Um silvo alto irrompeu ao redor deles. Uma labareda flamejante os rodeava, caminhando velozmente. Agora, estavam envoltos por um anel de fogo. O sequestrador disparava contra as chamas, sem nenhum sucesso. Não conseguia acertar o que quer que fosse. Subitamente, a chama mudou de direção e se chocou com contra o homem armado. Seu corpo explodiu com o choque. Sangue, carne e ossos se espalhavam pelo ar. Bruno e Juliana assistiam aterrorizados. Tomado pela força da adrenalina, Bruno conseguiu se soltar e depois desatou os nós que prendiam a esposa. Eles olhavam em volta, na tentativa de localizar aquilo que matou o sequestrador. Bruno tomou a arma, ainda presa na mão do defunto, buscou dentro do carro e viu que a chave estava na ignição. Na primeira tentativa já obteve sucesso com o motor. Eles subiram no automóvel e aceleraram. Bruno pôde ver pelo retrovisor a chama se acendendo novamente no meio da neblina. Meteu o pé no pedal do acelerador até esmagá-lo no assoalho do carro. Juliana também percebeu a chama, mas nada comentou. Poucos minutos dirigindo às cegas no meio da cerração e, ela começou a dissipar. Mais um pouco e o caminho estava limpo. Porém, quando olharam pela janela, o cativeiro estava ao lado, assim como o corpo ressequido e os pedaços do outro corpo espalhados pela área. Bruno perdeu a direção e a caminhonete avançou sobre uma valeta e capotou.

Juliana foi a primeira a recobrar a consciência. Atordoada, olhou pela janela e percebeu que Bruno tinha sido projetado para fora do veículo durante o acidente. Temeu pelo pior. Saiu da caminhonete e alcançou o marido. Ele respirava, estava apenas desacordado. Não demorou muito até que ele também recobrasse a consciência, atendendo às súplicas da esposa. Porém, estava com o pé quebrado e não conseguiria fugir. As vozes voltaram a sussurrar de dentro da floresta e, em seguida, a névoa também voltou a se formar. Juliana se ergueu, gemia algumas palavras, conversando consigo. Ela girava em torno do próprio eixo, como a Terra em seu movimento de rotação. Ela olhava para as pegadas, se lembrava dos vagalumes e dos olhos flamejantes de seu sonho. A névoa já estava densa. Bruno arrastou-se pelo chão e conseguiu alcançar a arma que havia tomado da mão do sequestrador. Juliana caminhou até ele e o ergueu. Ambos assustados, esperavam pelo pior. Sabiam que a arma não poderia salvá-los. O silvo, que ecoava longe na mata, vinha seguido por uma risada tenebrosa. Decidiram entrar no casebre como última esperança de defesa. Talvez resistisse a criatura uma vez mais. Seja lá o que fosse, era a mesma coisa que se manifestara na madrugada anterior. Entraram, trancaram a porta e esperaram. Juliana balbuciava consigo, buscando alguma lembrança que ela achava que os ajudaria. Bruno pegou um pacote de bolacha em cima da mesa. O barulho chamou a atenção da esposa. Ela viu o rolo de fumo e, de repente, sua mente se iluminou. Ela lembrou das pegadas que estavam no local em que o corpo do sequestrador explodira. Pareciam ir em sentido contrário ao do impacto. Os olhos e a cabeleira de fogo, os vagalumes. Tudo agora fazia sentido, mesmo sendo uma maluquice. As velhas histórias de pessoas que ficavam presas na mata a diziam o que fazer naquela situação. Ela se levantou, pegou o rolo de fumo e saiu pela porta. Os protestos de Bruno não a impediram. Ela caminhou até o fundo do terreno, na entrada da mata e pendurou o fumo num galho.

O silvo e as gargalhadas estavam muito próximos. A névoa estava mais densa do que nunca. Ela chamou pelo marido e o ajudou a sair da casa. Juliana pediu que o marido confiasse nela, não havia tempo para explicações e ele assentiu. Os dois caminharam e entraram na trilha. Sentiram os sussurros e as gargalhadas passarem ao lado. Seguiram. Horas depois, quando a luz do dia já começava a escurecer, a névoa se dissipava. A trilha terminava num bambuzal, era o único caminho a seguir. Ao atravessarem, avistaram a rodovia. Um último silvo foi ouvido, mas desta vez não era amedrontador. Longe, dentro da floresta o casal viu acenderem três pares de olhos e suas cabeleiras em chamas, eram mais de um Curupira.

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