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O LIXÃO

Conto: O Lixão
Autor: Soaréstes Santos

José Carlos saiu para trabalhar naquela noite de quinta-feira, imaginando ser um dia normal como qualquer outro. Ele trabalhava como motorista de um caminhão de coleta de lixo urbano na cidade de São Paulo, no turno da noite. Pegava dois ônibus para chegar na empresa. Encontrava a equipe, retirava o caminhão, seguia para a rota determinada e, por fim, descarregava toda carga no aterro sanitário. Já estava acostumado à rotina noturna e suas particularidades. Assaltos, bêbados, drogados, histórias de assombrações e outras situações inusitadas que só quem trabalha a noite tem a oportunidade presenciar. Gostava de sua rotina e das pessoas com quem trabalhava. O time era composto por quatro pessoas, três carregadores e o motorista.

A rota daquele dia era na região central de São Paulo, no centro velho, o lugar que eles menos gostavam. Já na primeira coleta houve uma ocorrência. Enquanto retiravam os amontoados de lixo da caçamba e os lançavam para o caminhão, alguma coisa escorregou de um saco e caiu no meio da rua. Quando foi recolher o objeto que resistia a ser atirado junto com os demais, o carregador se assustou e deu um pulo para trás. Era um braço! O membro direito de uma pessoa morena. Pela musculatura avantajada, deduziu pertencer a um homem adulto. Chamaram a polícia para registrarem o boletim de ocorrência. José Ficou aborrecido, logo no início do turno! Embora assustador, é impressionante o número de corpos encontrados nos lixos da cidade. A maioria são fetos abortados ou bebês abandonados. Mas, de vez em quando, surgiam corpos de vítimas de algum assassinato. Animais mortos em oferendas às mais diversas divindades também faziam parte dos objetos encontrados. Ele desceu do caminhão e esperou com a equipe. Sabia que a polícia demoraria para chegar ao local.

José Carlos não gostava de ver esses achados porque ficava muito impressionado. Sempre que via algo do tipo, tinha sonhos estranhos ou até pesadelos. Aquela ocasião, no entanto, foi diferente. Observou de perto, sem tocar, que a parte onde o membro fora decepado estava estraçalhada. Foi arrancado do corpo com violência, os tecidos estavam rasgados e as feridas se espalhavam na região do antebraço. Certamente, a vítima tentou defender-se do ataque. Pediu que mostrasse de qual caçamba o saco com o membro fora retirado. Chegando no local ele escrutinava o objeto. Revirou alguns sacos para ver se havia mais partes do corpo da vítima. Notou o sangue ao redor, parecia fresco. Todos estranharam seu comportamento, mas ninguém teve coragem de interrogá-lo. Olhava espantado para a cena, havia uma presença misteriosa no ar. Na noite anterior, durante o culto na igreja, uma profetiza anunciou um oráculo para ele. Disse para se precaver, pois a sombra da morte o estava rodeando com um manto avermelhado. Não encontrou nada que ligasse a profecia ao membro.

A polícia chegou ao local mais de uma hora depois da chamada de emergência. Os três agentes pularam da viatura e gritavam para se afastassem da cena do crime. Os quatro membros da equipe deram seus depoimentos e foram dispensados. José sentiu pena e demonstrou preocupação com a família da vítima. Como se sentiriam ao serem comunicadas sobre o membro encontrado? E o restante do corpo? Estaria ainda vivo? Percebeu que pensava em alta voz. O agente disse que era uma situação corriqueira. Comentou que uma pessoa desaparece a cada hora no estado de São Paulo, sendo grande parte na capital. José ficou espantado com a estatística. Um calafrio subiu dos pés até arrepiar seus poucos cabelos. Conversou com a equipe que precisariam correr, pois já estavam muito atrasados e seguiram viagem. Os policiais perceberam um rastro de sangue próximo à caçamba e o seguiram. Eram manchas separadas por alguns metros de distância, como se o corpo da vítima fosse arremessado no ar e depois da queda à frente, era novamente lançado. Percorreram cerca de cem metros até a última mancha de sangue no asfalto. A trilha desapareceu abruptamente. Parecia não haver nada no entorno, mas havia uma entrada para a galeria, que serve para escoamento das águas pluviais, escondida sob um veículo estacionado. Sem delongas, os policiais concluíram a perícia do local e partiram.

Como de costume, um colega da equipe ia à frente para arrumar os sacos de lixo de forma que facilitasse a coleta quando o caminhão chegasse. A equipe vinha atrás jogando dentro do caminhão os sacos organizados pelo caminho. Quando chegaram ao Vale do Anhangabaú, notaram que os lixos não estavam organizados. O primeiro pensamento foi de xingamentos ao colega que não fizera o seu trabalho. José dirigia o carro lentamente até que lhe pediram que parasse. Os três sujeitos estavam parados no escuro, pois a rede elétrica estava em manutenção, aguardando o desaparecido. Não era comum, mas algumas vezes eles passavam apuros devido ao funcionamento de seus intestinos que se negavam a reter seus dejetos. José queixou-se de mais um atraso, tentou imaginar o que o restante do turno os traria de surpresa. A vigília já durava mais de quinze minutos. Quando ele subiu na cabine e tentou dar a partida no motor, uma fumaça subiu embaixo do capô. Murmurou algumas palavras baixo, não queria que a equipe reclamasse também. Ligou para a empresa e relatou as desventuras da noite. O supervisor informou que mandaria um caminhão extra para o restante da coleta, mas que estava sem equipe. Seu time deveria seguir com o novo motorista enquanto ele aguardasse o guincho.

O novo coletor chegou ao local antes que houvesse sinal do desaparecido. Partiram apenas os dois carregadores e José aguardou pelo resgate. Muito tempo se passara desde que chegaram ao Vale. Decidiu ligar no celular do companheiro a fim de receber satisfação sobre o desaparecimento. A primeira tentativa caiu na caixa postal. Dois minutos depois, tentou novamente e, dessa vez a linha chamava. A escuridão da noite e o silêncio eram atípicos. Apesar da lua cheia iluminar a noite de maneira bela, pouco ela podia fazer contra as nuvens carregadas de garoa. O telefone chamava até dar no correio de voz outra vez. José ligou diversas vezes sem sucesso. Mais uma tentativa, jurou, seria a última vez que ligaria. Ouviu ao longe, bem baixinho, uma música soprada pelo vento. Desligou a chamada e a música logo parou. Ligou novamente e a música retornou. Lembrou que a melodia era o toque do celular do colega. Um funk que ele detestava, o som era daquele tipo de música que não se gosta, mas, mesmo assim, ela gruda na mente e toca repetidas vezes sem parar. Desta vez ele discou e aguardou a música. Seguiu o som até que houve silêncio. Notou que a ligação caíra na caixa postal. Nova tentativa. O som parecia mais próximo, mais alto. Tinha certeza de estar no local da origem do som, mas não via o aparelho de celular nem tão pouco o colega. Fora enganado pela acústica do sistema de esgoto. As notas subiam de um bueiro, porém a passagem era pequena demais para um adulto passar por ela. Seguiu o som por outros caminhos, mas sempre dava com uma boca de lobo. A preocupação com algum mal que poderia acontecer com o colega aumentou. Enquanto seguia mais uma vez uma das direções das quais o som subia do chão, percebeu uma grade aberta em uma viela entre prédios, próximo ao Teatro Municipal. Era uma escada que descia por um túnel vários metros abaixo do nível da rua. Ele já sabia que a cidade de São Paulo possui muitas galerias subterrâneas abandonadas, labirintos de esgotos e de canais de escoamento de águas pluviais. Lembrou que o Vale do Anhangabaú herdara o nome do riacho que foi canalizado e corre por baixo do solo até hoje.

José decidiu entrar pelas grades e descer a escada. Ficou mais animado quando, ao descer o primeiro lance de degraus, ouviu o funk mais alto. Pode ter sido por ali que o colega seguiu, ele pensou. Estava mais preocupado do que curioso em saber o que um sujeito faria naquele local no meio da madrugada. Atingiu o primeiro pavimento e percebeu um túnel largo e, pelo som do funk que ecoava, bem comprido. Acendeu a lanterna do celular para comprovar as proporções grandiosas do túnel. Era cerca de quatro metros de largura, dois metros e meio de altura, mas não fazia ideia do comprimento. A música parou. Ele discou novamente, mas agora não havia sinal de celular. Na dúvida se seguia o rastro do colega ou voltava para chamar a polícia, ele enxergou um facho de luz uns trinta metros à frente e, então, continuou. Caminhando com o cuidado e com o medo prudente que se deve ter ao andar na escuridão, ele encontrou a fonte de luz. A lua cheia brilhava agora no céu sem nuvens e ele a via pelas grades de um bueiro. Lá no alto ela parecia muito maior porque era a única coisa que se via. A pequena passagem acima era preenchida pela imagem do satélite natural da Terra. Ele tentou novamente uma ligação, afinal, havia espaço para o sinal chegar até ele. Para sua surpresa, ouviu o funk e ficou um pouco feliz. Mais à frente, no meio da escuridão, brilhava a tela do celular vibrante. Ao encontrar o aparelho, caiu o seu semblante e o espanto tomou conta dele. O dispositivo estava sobre uma poça de sangue. Olhou mais adiante e viu um pedaço de tecido do uniforme do colega. Concluiu que deveria voltar e chamar a polícia, definitivamente. Porém, ao iniciar o percurso de volta ele ouviu um grito por socorro. José correu como um bandido foge de um soldado. Para sua própria surpresa, suas pernas o levavam ao encontro do pedido de socorro e, não, para a porta de saída. Ele se embrenhou na escuridão até encontrar quem clamava pelo auxílio. Era um jovem, perto dos dezoito anos. Estava com roupas novas, porém, muito sujas. Ele dizia palavras desconexas, estava em estado de choque. José perguntou pelo colega diversas vezes até ser compreendido. O jovem retomou a consciência e, agora, com clareza, escutava José contar sua breve história de como foi parar ali. O jovem respondeu com dureza e rispidez que não ajudaria e que era melhor saírem juntos dali ou morreriam. José insistia na ideia de localizar o colega. Mas o jovem resistia, queria ir embora de qualquer maneira. Porém, ele não sabia onde estava e nem tão pouco como voltar à superfície. Ele tentou extrair o caminho da saída de José com jogos de palavras. O motorista percebeu a estratégia do jovem e arredou o pé, disse que retornariam juntos e sem o amigo, não sairia de lá. Prometeu solenemente com sua palavra, mas ele mesmo já não sabia como retornar.

A sensação de estar sob a visão de alguém desconhecido não é nada boa. Ainda mais naquela escuridão. O vento trazia em suas asas o odor pútrido dos esgotos e das galerias abandonadas. Cada ruído ganhava proporções enormes, simplesmente pelo fato de estarem na quase absoluta escuridão. Apenas a lanterna do celular funcionava, mas este já dava sinais de que não ajudaria por muito tempo, pois a bateria se esvaia com facilidade.

Foram tantas as curvas para a direita e para a esquerda em diversas encruzilhadas que, por algumas vezes, desconfiava que o jovem não sabia para onde os guiava. Caminharam até alcançarem uma galeria ampla. A luz adentrava no salão através de passagens que se estendiam a grandes alturas, do teto até as grades dos bueiros na superfície. Os raios de luz que ousavam cruzar o vão revelavam um lugar funesto. Tinha certeza de não ser mais nos esgotos subterrâneos que estavam, aquilo deveria ser um bolsão de escoamento das águas da chuva que impediam, mas nem sempre, as inundações no centro da cidade. O jovem sinalizou para o canto do salão onde teria encontrado o colega. José desligou a lanterna, já que havia pouca luz, mas, também, pensando em poupar bateria para o retorno, e caminhou lentamente. Sua figura surgia como uma aparição dentro dos raios de luz que vinham do teto e depois mergulhava na escuridão novamente. Ouviu um grunhido próximo, olhou para trás e viu a imagem do jovem, parecia com uma estátua sob a luz de uma exposição de artes. Chamou pelo amigo. Não houve uma resposta clara. Os gemidos tentavam dizer algo. Ele seguiu o som e encontrou o colega amordaçado e enrolado em uma corda no canto de uma parede. Um rosnado ecoou pelos túneis de onde vieram. Enquanto soltava o companheiro de trabalho, chamou pelo jovem, quando foi surpreendido pela voz do cativo que dizia que aquela pessoa foi quem o capturou. José olhou para trás com medo. O rosnado aumentava o volume e a frequência. O jovem estava prostrado ao chão. Joelhos e mãos apoiando o corpo que queimava em febre. O calor era tão grande que podiam ver o vapor da transpiração subindo pela luz. Seus olhos se iluminaram como o sol, num amarelo vivo, quase uma labareda. Um aulido ribombou trovejante pelos túneis. José e o colega sentiram o impacto reverberar em seus ossos. Eles sabiam que já não poderiam voltar pelo caminho pelo qual vieram, a única saída era continuar e torcer para que o túnel na outra extremidade do salão terminasse numa passagem para a superfície.

José pensou em ajudar o jovem, mas foi impedido pelo medo. A visão que o assolaria até o fim da vida estava diante dele. O jovem se retorcia caído, ele arrancava as unhas das mãos com mordidas e arranhava a pele se arrastando no chão. José estava petrificado com o sangue já cobria o corpo do jovem. Percebeu que as unhas cresceram. Ele rasgava a pele e a lançava longe, como quem tira uma roupa que está em chamas. Como lâminas, as garras atravessavam a pele e a cortava. Porém, a ferida se regenerava rapidamente. Os músculos, antes à mostra, eram cobertos por uma camada grossa de pele. Uma pelagem avermelhada começava a brotar. O ruído de passos acelerou no túnel, alguém chegaria ao salão em breve. José lamentava e gritava ao jovem o que ele poderia fazer para aliviar o sofrimento, mas tudo em vão, a dor o consumia. Os pelos não paravam de crescer, a esta altura, seus músculos protuberantes e a nova dentição já anunciavam o que estava acontecendo. José, porém, continuava incrédulo e passivo diante de tudo. Ouviu, então, o grito do colega. Mesmo sua mente negando o que estava aos olhos, ele se levantou, caminhou até o colega e os dois partiram para a outra extremidade do salão. Enquanto corriam no labirinto subterrâneo, ouviam os gritos do jovem. O som, no entanto, foi mudando de tonalidade. Uma nota mais grave e mais rouca ecoava agora. Os gemidos se transformaram em uma espécie de rosnado. Após um breve silêncio, o uivo retumbou através dos túneis e, para agonia dos fugitivos, os alcançou. Não sabiam o que tinha acontecido e procuravam não especular sobre o assunto. Correram o quanto puderam. Chegaram a um outro saguão. Era um tipo de plataforma. Nas laterais, dois fossos isolavam o local. No fim da plataforma, dois caminhos se apresentavam. Eles notaram os trilhos e imaginaram ser uma obra abandonada do metrô. É certo que o submundo da cidade de São Paulo esconde muitas coisas e as adormece. Apesar de parecer abandonado, podiam sentir uma presença espreitando na atmosfera. Os fachos de luz vindos da superfície se assemelhavam a torres de gelo espalhadas ao longo do caminho, iluminando o palco da criatura que se apresentaria.

O motorista insistia com o colega para correrem, mas o colega não conseguia. Seus músculos ardiam, não tinha mais força para um passo sequer. Eles decidiram descer por um dos fossos laterais. A plataforma se projetava como uma marquise sobre o lugar onde ficariam os trilhos e os dava abrigo. Toda aquela escuridão preenchia o local, as luzes que baixavam do teto não se atreviam em iluminar um centímetro além da fresta de onde vinham. Era como se fossem fissuras esculpidas na rocha de pura escuridão. Decidiram ficar apenas o suficiente para que aquele que estava convalescido pudesse recuperar as forças para seguirem. Tomaram um picareta e uma barra de ferro como armas para a proteção, dos itens da obra abandonada. Se encolheram sob a marquise o fosso e esperaram. José sussurrava perguntas ao colega, buscando entender o que acontecia. Este, porém, reclamava da dor de cabeça intensa causada pela pancada que recebeu. Ele recordava apenas da grade aberta que dava para uma das entradas do labirinto que estavam. De repente, sentiu atingi-lo e acordou com José o chamando durante a missão de resgate. Ouviram passos no lado oposto do salão. Algo vinha de dentro de um dos túneis. Uma respiração pesada e forte acompanhava as pegadas. Os dois se levantaram e, vagarosamente, moveram a cabeça para fora da marquise e espiaram. A criatura caminhava na escuridão até estacionar sob um dos fachos de luz e se revelar. Parecia um cachorro, mas era muito maior e mais forte. Do tamanho de um urso, talvez, só que ao invés da banha e a feição amistosa, sustentava uma musculatura superdesenvolvida e uma face detestável. Era possível distinguir as formas sob o manto prateado que a cobria. Como um cão de guarda ficou sentada por minutos, parecia esperar por alguém. Até este momento tinha a postura de uma fera comum. Talvez fosse a deformação de alguma espécie de cão ou até mesmo uma experiência mal sucedida, pensavam eles. O túnel pelo qual chegaram, trazia o som de uma corrida rápida e pesada. A criatura adentrou o local, desfilou até o primeiro facho de luz e se sentou, espelhando a posição da outra. Os dois estavam tão perplexos que se esqueceram até de respirar. Fitaram a criatura. A pelagem avermelhada era pincelada por uma lista negra. A postura atlética era semelhante à outra. Ambos tiveram a impressão de conhecerem a criatura, até o momento em que perceberam que olhavam para o que achavam ser um lobo-guará gigante. Porém, abandonaram a ideia assim que a criatura ficou de pé, apoiada nas patas traseiras. A apneia voltou, não por espanto, mas, agora, por medo. O silêncio era quebrado apenas pelas respirações profundas das criaturas. A de pelagem prateada trazia um ar de experiência e suas cicatrizes confirmavam isso. Era muito forte, talvez uma fera guerreira no passado, mas certamente não estava no auge de sua forma como a outra. Seus olhos cintilavam um amarelo já desvanecido. Já os olhos e os pelos da outra criatura pareciam labaredas iluminando o local. Seu vigor físico transcendia o natural, uma aura emanava dela. Mas aquela juventude não trouxe alívio para os colegas. Pelo contrário, uma fera mais poderosa aumentava seus temores.

As criaturas se encaravam em pé. Cada uma num extremo da plataforma. A prateada tomou a iniciativa e deu o primeiro passo, após um uivo ensurdecedor, em direção à outra. Em instantes, as duas se dispuseram a correr. Depois, se lançavam sobre as quatro patas aumentando a velocidade, até que se encontraram. O choque entre as criaturas fez tremer os esqueletos dos colegas. O frenesi tomou conta do local. As duas feras brigavam com ferocidade. Socos, mordidas, trombadas, esganadas, ataque com as garras, além de qualquer objeto que pudesse ferir o oponente foram utilizados, era a grandiosidade de um embate entre titãs. José estava hipnotizado pela batalha até ser despertado pelo colega que, acenando, mostrou que deveriam seguir caminho enquanto as bestas brigavam. Eles seguiram pelo fosso, silenciosamente, mas não podiam deixar de prestar atenção na luta. Quando estavam próximos a entrada do túnel, o inesperado acontece, a criatura prateada é arremessada e cai diante deles. No momento em que os olhos amarelos da criatura fitaram os seus, José, por instinto, enterrou a barra de ferro no olho direito da criatura. O golpe foi tão forte que atravessou o seu crânio e brotou na parte posterior. Num instante, o outro olho desvaneceu por completo e agora estava pálido como uma névoa. Assim terminou a vida do último lobisomem do Brasil Imperial. O jovem Guará se tornava, definitivamente, herdeiro do fadário licantropo e protetor do território de São Paulo.

O lobisomem-guará aguardava atento a qualquer movimentação no local onde o ancestral, maldito e não escolhido, desabou. José e seu amigo se espremeram na passagem e conseguiram alcançar o túnel. O ambiente trepidou, como num terremoto, o chão não dava sensação alguma de segurança. A poeira subia agitada pela movimentação de um trem do metrô próximos a eles. Eles aproveitaram o barulho e correram no único caminho existente. Instantes depois, o ruído do trem cessou. Os dois decidiram parar e aguardar o próximo trem para se moverem novamente. Não queriam perder a vantagem do alarido. Não havia mais passagens de ar que possibilitassem a entrada de alguma luz. As trevas os cercavam de todos os lados, os oprimindo e enfraquecendo suas mentes. Ouviram o aulido do Guará distante, ele deveria ter encontrado o corpo do lobo prateado com a barra estocada na cabeça. O jovem farejou o terror dos dois companheiros e quis caçá-los. Tamanho era seu ódio e maldade que ele pouco se importou com seus ferimentos da batalha. José e seu colega iniciaram sua fuga mais uma vez, corriam por suas próprias tolas e fúteis vidas. Não demorou para que o Guará os avistasse com seus olhos flamejantes que enxergam dentro da mais densa escuridão.

Enquanto ouviam os rosnados e profundas respirações que os perseguiam, notaram um pequeno acorde que chegava manso. Uma brisa suave soprou dentro do túnel. O frescor do ar limpou parte do medo que carregavam. Viram um tipo de passagem, uma fumaça fina escapava por uma fissura na parede de concreto e trazia paz sobre eles. Enquanto eles ainda se apertavam pelo caminho estreito o Guará os alcançou. A fera estava sedenta de sangue. O furor acrescentava mais força ao colosso, que forçava o caminho. A fenda se alargou. Tiveram a sensação de entrar numa caverna e, mais a frente, se maravilharam com um belo e alto salão, limpo e iluminado. Mesmo intimidados pela energia que emanava do local, eles não pensaram duas vezes em avançar. O Guará estava bem atrás deles. Na outra extremidade, as portas do salão estavam cerradas. Quando as forçaram e elas não cederam, perceberam que era um beco sem saída e suas esperanças fraquejaram. Ficaram juntos, com os olhos bem fechados, aguardando o bote fatal. Entretanto o ataque não ocorreu. Os primeiros pensamentos foram de terem morrido tão rápido que não sentiram dor alguma. Tomaram coragem e viraram para trás. Seus olhos acompanharam o lindo mosaico de ladrilhos. A seguir, perceberam os bramidos raivosos da besta que estava agitada no limite do salão. Não entendiam a razão, mas a fera não se atrevia a pisar naquele belo piso. Repararam nas estátuas distribuídas pelas paredes. Imagens de anjos e outras figuras que impunham dignidade, serviam como vigias do local. Mesmo a sua beleza e a paz que emanava do salão, era impossível não reparar na fera. Ela corria de um lado para outro, às vezes sobre duas patas somente. Um ser colossal, cheio de músculos, com um olhar que era pura maldade. Ela transpirava poder e ódio.

Enquanto ainda se perguntavam o que retinha a fera longe, ouviram ruídos vindo das portas que estavam cerradas. Um homem armado com uma pistola surgiu. Ele usava vestimentas sacerdotais que não reconheceram em princípio, mas finalmente se deram conta de que o homem era um bispo. Ele passou sem lhes dar qualquer atenção, seus olhos miravam a besta. Ele gritou algumas palavras que irritou mais a criatura. Vendo que suas ameaças não surtiam efeito, o bispo disparou a arma. O projétil atingiu o peito da criatura que foi lançada ao chão. Entre grunhidos e uivos a fera voltou pela fissura na parede e sumiu. Atônitos, os dois colegas perceberam que o bispo os escrutinava. Quando lhes deram atenção ele apenas resmungou: “detesto lobisomens”. Eles seguiram o homem pela porta.

Depois de cruzarem diversos corredores e escadas, descobriram que estavam sob a Catedral da Sé, no centro de São Paulo. Deduziram que a criatura não ousava entrar em solo sagrado. As criptas secretas da igreja os salvaram. Eles continuaram caminhando e passaram pelo subsolo histórico que pode ser visitado e subiram para nave principal. O bispo não lhes dirigiu mais palavra alguma. Abriu a porta e acenou para que saíssem. José percebeu que já era dia. O homem os despediu com uma bênção e bateu a porta.

José abraçou o colega, sem qualquer constrangimento, o apertava contra seu peito dizendo tudo estava bem, que tudo ficaria bem. Seus expedientes terminaram, José se permitiu demonstrar todo o amor que tinha pelo filho. Enquanto seguiam para casa, debatiam qual a versão da história seria apresentada na empresa. Lobisomens no centro de São Paulo não seria bem recebido. José olhou para o filho com o receio de um pai que sabe que o mundo no qual passariam a viver era pior do que qualquer coisa que já imaginara. Preocupou-se mais quando sentiu uma fisgada em sua perna. Agora que as coisas já estavam mais calmas e o calor da emoção esfriava, sentiu o ferimento causado pela fera enquanto cruzavam a fissura na parede que dava para o salão. Teria de esperar a próxima lua cheia para descobrir quais novos perigos ele corria.


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