AMIZADE NA PERIFERIA
Autor: Soaréstes Santos
Luiz Henrique, o Luba, e Pedro, o Pedrinho, eram amigos desde a infância. Cresceram na periferia da cidade de São Paulo, no bairro de Jardim Ângela, na zona sul. Pedrinho, apesar do apelido diminutivo, tinha o porte de um boxeador peso pesado. Negro, alto, mais de cem quilos de músculos avantajados e uma personalidade muito pacífica. Luba era o maioral, tinha o moral elevado na quebrada, pois a habilidade futebolística herdada do pai o consagrou nos jogos da várzea.
No colégio, Pedrinho sempre defendia o amigo das encrencas que arrumava. Mas agora, adultos, não interferia muito, afinal, as coisas mudaram e qualquer briga, mesmo no futebol, pode acabar tragicamente. Ainda assim, o gigante aconselhava o companheiro a fugir dos problemas em que se metia.
Pedrinho era auxiliar de cozinha de um restaurante famoso nos Jardins, bairro nobre da capital paulistana. Com muita dificuldade pagava a faculdade de gastronomia e esperava pacientemente a chance de aprender na cozinha com o renomado chefe. Por enquanto, ele era pia, ou seja, o encarregado por lavar os pratos. O único contato que tinha com a comida era dos restos que voltavam nos pratos dos clientes e das panelas utilizadas pela equipe de cozinheiros. Mesmo assim, não desistia, continuava firme em busca de seu sonho.
Certo dia, o auxiliar de cozinha voltava para casa no negreiro, como é conhecido o último ônibus do dia, que estava lotado, apesar da hora avançada. Cansado e preocupado com a prova da faculdade no dia seguinte, ele foi surpreendido pelo grito que surgiu de repente dentro do ônibus:
- É um assalto! Carteira e celular dentro do saco! Agora!
O barulho interrompeu o silêncio do coletivo. Aqueles que aproveitavam a viagem para dormir, afinal, o percurso poderia durar quase três horas, dependendo do trânsito, acordaram e sem se assustarem, já providenciavam os pertences e depositavam no saco do assaltante. A situação parecia ser rotineira, alguns já possuíam a tática de levar consigo uma carteira para o ladrão e outra com os documentos e trocados que possuíam, até mesmo celulares antigos, grandes e pesados eram carregados para se ter algo para ser roubado. Pois os ladrões acham uma falta de respeito roubar um cidadão e ele não ter nada para ser levado e atiram nos pobres coitados.
Quando um dos passageiros esboçou uma pequena reação no fundo do ônibus, um comparsa daquele que anunciou o assalto puxou uma arma e meteu uma coronhada na cabeça do trabalhador indignado. Ele tinha esquecido o celular do ladrão em casa e agora teria que passar o aparelho novinho, e o pior, ele tinha pagado apenas quatro prestações, ainda faltavam oito! O comparsa agilizou o processo e começou a recolher os pertences dos passageiros. Quando passou por Pedrinho, o gigante reconheceu o amigo, e por isso não foi assaltado.
– Caramba negrão, o nóia amarelou quando viu o seu tamanho! – comentou um dos passageiros, fazendo piada pela situação, apesar de ter tido seus pertences levados.
Pedrinho desceu do ônibus cerca de quinze minutos depois do assalto e andou mais dez. Quando virou na esquina da rua de sua casa viu Luba descer da moto do comparsa e caminhar em sua direção.
– Porra mano! Fazendo merda de novo! Já te avisei para parar de fazer isso. Qualquer dia desses você vai rodar. – disse Pedrinho ao amigo enquanto o cumprimentava.
– Que é isso nego, vai ficar com esse papinho agora? Lição de moral? Vou vazar que não quero ouvir nada não. – falou Luba já se despedindo do amigo. Ele caminhou e virou na esquina mais próxima. Morava na rua de cima.
Pedrinho caminhou até o fim da rua e ao chegar na viela onde ficava a casa em que morava, alguns manos do movimento chegaram.
– Cola aqui negrão! Vamo trocar uma ideia. – disse um sujeito que tinha uma aparência que faria qualquer um atravessar a rua para não cruzar com ele.
Pedrinho não se surpreendeu, tão pouco se assustou com o chamado. Ele conhecia todos na comunidade. A maior parte do pessoal do movimento tinha estudado com ele ou o conhecia do futebol. Pedrinho não era habilidoso, mas era um dos últimos zagueirões que restavam na vila.
– Fala truta! Qual o moio? De boa? – indagou Pedrinho.
– Ae, fala pro nóia do seu amigo parar de assaltar os busão e os boteco da quebrada, senão a gente vai dar uma lição nele! – disse o sujeito, que estava na garupa de uma moto sem placa.
– Eu já falei isso! Ele tá fazendo um monte de merda. Mas vou passar o recado. Pode deixar. E de resto? Tudo de boa? – disse Pedrinho.
– Na correria de sempre. Tá ligado qual que é, né irmão? Vou correr, que ainda tenho que resolver umas fita nervosa hoje. Tamo junto! É nóis! – o sujeito cumprimentou Pedrinho e a moto saiu em disparada. O outro indivíduo que estava pilotando a moto sequer tirou o capacete.
No outro dia, Pedrinho encontrou Luba logo pela manhã. Na noite anterior ele com certeza estava noiado.
– Desculpa aí nego, tava zoado ontem! Cê tá ligado que é meu truta! – disse Luba.
– Ae, os maluco do movimento colaram em mim ontem a noite, antes de eu entrar em casa. Se você vacilar de novo os maluco vão te quebrar! Fica na boa e para de fazer cagada. – Pedrinho passou a mensagem que haviam pedido.
– Pode deixar, tô na moral agora. Parei geral. Essa vida de nóia não dá para mim não! – respondeu Luba, visivelmente abalado. Mas com certeza isso fazia parte da depressão do fim do efeito das drogas que consumia.
No domingo seguinte tudo parecia normal, o zagueirão continuava operando na defesa do time da vila, enquanto Luba destruía os adversários com dribles desconcertantes. Mas o fôlego não era mais o mesmo. No fim do primeiro tempo Luba se arrastava em campo e pediu para ser substituído.
– Tá vendo! A porcaria que você tá usando tá acabando com você! – disse Pedrinho no vestiário, logo após a vitória.
– Vamo lá naquela casa de recuperação que te falei! Os vizinhos crentes, que arrumaram a parada. Vai ser bom pra você! – o gigante tentava persuadir o amigo.
Ele negou mais uma vez. Pensava que poderia sair daquela situação quando quisesse.
A convicção de Luba em deixar as drogas e os assaltos durou somente três semanas. Era uma sexta-feira, Pedrinho voltava do restaurante. Naquele dia ele recebera a notícia que deixaria de cuidar das louças e passaria a auxiliar nas atividades mais simples da cozinha. Cortar as carnes era sua especialidade, ele adorava isso, e tinha mesmo grandes habilidades. Apesar de não poder sugerir nada de novo, o contato com o chef seria ótimo e ele poderia, assim que tivesse a oportunidade, apresentar algum corte não muito comum, mas que fazia sucesso nos churrascos na laje ou nas quadras da vila.
Ao chegar na esquina da rua de sua casa, viu Luba ajoelhado no meio fio, cercado por quatro delinquentes. Pedrinho tentou retornar, mas sua presença já tinha sido percebida. Ele ficou imóvel assistindo o amigo apanhar. Não podia fazer nada, no fundo, ele até acreditava que Luba merecesse uma correção. Sabia que o pessoal do movimento não mataria o amigo, pois eram conhecidos desde a infância. Depois de uns vinte minutos batendo em Luba, um dos sujeitos levou os dedos a boca, assobiou, e, com um aceno, chamou Pedrinho. Ele caminhou até onde o amigo estava.
– Ae, pode contribuir com o corretivo do nóia aqui! – disse o mesmo sujeito que havia mandado o recado para Luba.
Pedrinho negou com um gesto, não queria falar para que o amigo, que estava vendado, reconhecesse sua voz.
– Qual é negrinho! Se não contribuir com o corretivo, você vai rodar também! – retrucou o sujeito.
Contrariado, Pedrinho deu dois socos no amigo.
– Bate com vontade negrão! Você não tá fazendo carinho na sua mina não! Bate com vontade! – disse o sujeito, ao perceber que Pedrinho disfarçava os golpes.
Pedrinho se concentrou e utilizou toda a força de seu corpo avantajado e desferiu quinze socos em Luba. Cada soco que encontrava o corpo do viciado, o jogava ao chão e eram seguidos de gemidos de dor.
– Caramba nego! Isso é que é vontade! – disse o criminoso, rindo da agressão.
– Pode vazar! Já terminamos por aqui! – concluiu.
O sujeito esperou que Pedrinho entrasse em sua casa para então retirar a venda dos olhos de Luba.
– Olha bem no meu olho seu nóia! Se você aprontar de novo, não vai ter mais corretivo não. Você vai subir! – ameaçou o sujeito.
Os agressores subiram em suas motos e sumiram. Luba se levantou e caminhou em direção à casa do amigo. Ao toque da campainha, dona Lourdes, mãe de Pedrinho, olhou pelo vitrô da cozinha e avistou Luba no portão.
– Pedrinho, vai ver o que seu amigo quer. – disse a mãe do gigante.
Pedrinho desceu a escada e foi falar com o homem que estava em farrapos no portão.
– Caramba nego! Bem que você me avisou. Os malucos me deram um corretivo brabo! – disse Luba.
– Sério! Quando foi isso? Foi agora? – perguntou Pedrinho, tentando disfarçar e parecer que estava surpreso em saber da notícia.
– Foi agorinha mesmo. Nem te conto! Mas o pior de tudo foi um maluco que chegou por último. Eu já tinha apanhado bastante, mas depois colou um cara que tinha a mão mais pesada de todas! O cara me bateu com uma vontade! Quase morri! Por pouco não deve ter explodido alguma coisa dentro do meu corpo! – contou Luba.
Pedrinho tentava esconder o sorriso, mas não se continha.
– Pô nego, não precisa me zoar. – lamentou o amigo.
– Vamo lá chamar o crente! Quero ir hoje para aquela casa de recuperação que ele tinha falado! – concluiu Luba.
Os dois caminharam até a casa do irmão da igreja e, após esperaram por duas horas. Um carro surgiu, Luba entrou e foi buscar sua recuperação.
– Que bom que ele aceitou. Você foi usado por Deus para salvar seu amigo das drogas. – disse o homem.
O gigante sorriu e caminhou de volta para sua casa. A fala do crente trouxe certo consolo, apesar de tudo, ele se sentiu muito mal em agredir o colega.
- Deus escreve certo por linhas tortas. - pensou. - Ainda bem que a linha torta fui eu. – concluiu.
Satisfeito, Pedrinho chegou em casa e descansou. Dormiu o sono dos justos.
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